Psicanálise & Quotidiano

03/05/2024

Normal e Patológico: Uma linha tênue

 

    Certa vez li uma frase do psicanalista Contardo Calligaris que dizia “Numa psicanálise, descobre-se que a vida adulta é menos adulta do que parece. Ela é pilotada por restos e rastro da infância”. Na época, esta frase me chamou muita atenção, porque estava tendo os primeiros contatos com a terapia psicanalítica e fui percebendo o quanto isso era real.

    Entretanto, a psicanalise também me foi apresentada de forma preconceituosa, ouvia coisas do tipo: “Só faz terapia quem é doido” ou “Eu não faço analise com fulano, porque ela mora na mesma cidade que eu, não teria coragem de contar minha vida”.

    Durante o processo analítico, também fui quebrando preconceitos. Penso que assim também tenha ocorrido no surgimento da psicanalise. Quando um médico que atendia pacientes com dores crônicas, paralisias e não achava lesões que causassem tais sintomas, em uma época que se não existisse lesão não havia doença. Freud de certa forma foi subversivo, ousou escutar as mulheres, investigar uma causa e não só tratar os sintomas. Freud foi estudando, observando, questionando. Como deve ser feito, porque às vezes a forma como as coisas são passadas, são naturalizadas e aceitas sem questionar.

    Sempre me interessei por livros, filmes, series e fui percebendo a forma como a literatura passava a ideia de loucura, por exemplo. Quase sempre colocando um personagem com trejeitos, exagerados, solitários, mal trajado, alguém que transgredia as regras, que falava o que ninguém tinha coragem de dizer, sem filtros. Mas foi um vizinho , que irei chama-lo de “Sr. L”, que mudou meu olhar.

    Sr. L, era uma pessoa que ate a adolescência convivia com os pais e irmãos. Os irmãos foram saindo de casa, os pais faleceram e ele ficou só. Com o passar do tempo foi vivenciando situações e perdendo um pouco da sanidade, idas a médicos, intervenções medicamentosas, internamentos e surtos frequentes.

    As pessoas se referiam a ele como “Sr. L doido”, como uma forma de identificá-lo, de separar de outros “L”. A ideia que eu tinha tratamento também era carregada pela ideia de senso comum, que teria que ser isolado, dopado. Ele era um ser invisível para a maioria das pessoas, exceto pelo medo que tinham dele, os familiares passavam as refeições por uma grade, limpavam a casa com pouca frequência, rapidamente, o que se sabia é que tinha pouquíssimos moveis, uma cama, cômoda e alguns utensílios domésticos,  nunca via ninguém lá, além dele, alguém que  o escutasse ou lhe  fizesse companhia , ele conversava muito, sozinho.

    Os familiares diziam que tinha que ser assim, porque hoje em dia não se interna mais, fazendo referência ao lugar que conhecemos como hospício. Geralmente um lugar sujo, afastado do centro urbano de maneira estratégica, cheio de corpos com sinais vitais, mas sem vida, retirados da convivência social, anestesiados.

    Como a maioria, eu também tinha medo dele, de suas reações. Hoje, depois de todos os processos analíticos vejo a historia dele por outro ângulo, não me colocando no seu lugar, mas entendendo que o lugar dele fala de algo subjetivo, que somos uma imensidão, uma sucessão de fatos, emoções e sentimentos, muitas vezes mal elaborados ou não descarregados. Porque o dito normal e patológico há uma linha tênue e como dizia Freud, a diferença entre o normal e patológico é de grau e não de qualidade. Talvez o rompimento com a realidade tenha acontecido como o único recurso que tinha.

    Em 2022 em uma de suas raras saídas, ele foi encontrado em um tanque na zona rural da cidade, morreu afogado. Não se falam muito sobre o ocorrido, assim como em vida quase ninguém o notava, novamente ele foi esquecido, isolado. A casa foi vendida, mas nunca reformada, continua destruída por dentro, vazia, assim como a historia do antigo morador.

    O processo analítico me fez perceber que há um valor na subjetividade e que  vivemos tempos difíceis quanto a isso. Há um modo de sofrimento para cada época, hoje rotulamos pessoas como se fossem objetos danificados a serem corrigidos quimicamente numa tentativa de enquadrar nos moldes da atualidade.

    O conceito de Psicopatologia precisa ser revista. Centrando na subjetividade, nos modos de sofrimento que cada época apresenta. Hoje, não existem hospícios, não no sentido de instituição, como estrutura física, os loucos andam livremente , trabalham, estudam, são disciplinados, conversam com aparelhos eletrônicos que chamam de Alexa, revivem pessoas com a ajuda da Inteligência artificial, dirigem empresas, países. Porque loucura é relativo, talvez hoje tratamos como loucura o que em outra época ou outra cultura foi visto como naturais e legítimos. No futuro poderemos ter esse mesmo olhar e considerar algumas insanidades de hoje natural. No fim, julgamos pessoas que não compartilham da mesma realidade sem levar em consideração que ser normal também é questionável.

    Em uma época de exageros medicamentosos, remédio para acordar, dormir, aumentar a disposição. Excesso de estímulos, informação, positividade, desempenho, auto diagnósticos, tratamentos rápidos. Transtornos, déficit, síndromes tem crescido a cada dia. Será que estamos diagnosticando melhor ou patologizando mais? Penso que estamos vivendo uma época que é preciso se encaixar em um dessas patologias para nos sentirmos normais, de fato.

    Eliane Brum, em um de seus artigos descreve muito bem sobre um dos adoecimentos modernos: A exaustão.  “Estamos exaustos e correndo. Exaustos e correndo. Exausto e correndo. E a má noticia é que continuaremos exaustos e correndo porque exaustos-e-correndo virou condição humana dessa época. E já percebemos que essa condição humana um corpo humano não aguentaO corpo então virou um atrapalho, um apêndice incômodo, um não-dá-conta que adoece, fica ansioso, deprime, entra em pânico. E assim dopamos esse corpo falho que se contorce ao ser submetido a uma velocidade não humana. Viramos exaustos-e-correndo-e-dopados. Porque só dopados para continuar exaustos-e-correndo. Pelo menos até conseguirmos nos livrar desse corpo que se tornou uma barreira. O problema é que o corpo não é um outro, o corpo é o que chamamos de eu. O corpo não é limite, mas a própria condição. O corpo é."

 

Referencias bibliográficas:

Brenner, Charles. Noções básicas de psicanalise. São Paulo,1975

Freud, Sigmund. Sobre Psicopatologia da vida cotidiana, in obras psicológicas completas de Sigmund Feud. Rio de Janeiro , ed. Imago,1901

Han, Byung- Chul. Sociedade do Cansaço; tradução de Enio Paulo Giachini, 2ª edição ampliada- Petropolis, RJ. Vozes, 2017.

Brum, Eliane. Descontentamentos. Disponível em: http://elianebrum.com/desacontecimentos/exaustos-e-correndo-e-dopados-2/

 

Por: Simone Sacramento - Graduada em Serviço Social.

Trabalho de conclusão do curso de Introdução ao Pensamento Psicanalítico do NPA.

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Psicanálise e Quotidiano é o espaço destinado a publicações de textos curtos, sem cunho teórico, de forma acessível e com reflexões acerca de temas do dia a dia, através do olhar psicanalítico. A coordenação do projeto é de Danilo Goulart.