Psicanálise & Quotidiano

04/12/2023

Com a cabeça nas nuvens

 

     Durante a infância, uma das brincadeiras possíveis e de fácil alcance é buscar identificar formatos familiares nas nuvens. Um rosto, um animal, uma âncora, um coração ou um arco e flecha, são infinitas as possibilidades de imagens a serem vistas. Cientificamente, esse fenômeno pode ser nomeado como pareidolia, que consiste na atribuição de uma interpretação (um padrão ou significado) a um estímulo onde “não há nenhum”. Me pergunto: Mas não seria essa a raíz do processo criativo? Penso que, quando vemos algo com nossos olhos e associamos através de nossas mentes, únicos em cada um de nós, atribuímos interpretações pessoais e intransferíveis, a tudo e todo o tempo. Quando atribuímos nossos significados às coisas, também inventamos a percepção do que chamamos de realidade.
     Ainda nessa linha de pensamento, se por algum motivo exista um distanciamento dessa criança interior que brinca, inventa e atribui significados próprios ao que percebe, então torna-se possível, também, olhar para o céu e visualizar apenas “um aglomerado de gotas diminutas de água ou de cristais de gelo em suspensão no ar, e que dão origem às chuvas” ou um conjunto de massas brancas seguindo a direção do vento. Perceba que eu utilizo a palavra “apenas” e chamo atenção para isso, pois acredito que nuvem é sim “um aglomerado de gotas…”, mas não precisa se restringir a isso, tendo em vista a incrível capacidade que temos, em potência, de fantasiar. A fantasia é como uma lente que utilizamos como um dos recursos possíveis para lidar com as tensões e frustrações inerentes à existência, é o lugar íntimo em que podemos realizar nossos desejos, sonhar uma realidade diferente.
     A ideia que tento transmitir através deste escrito é uma relação ilustrativa de que a experiência proposta pela psicanálise é como a de olhar para as nuvens no céu. Por exemplo, se, preservando a lembrança dessa brincadeira infantil, voltarmos a olhar para o céu com o intuito de ver imediatamente algo específico, a fim de sermos levados a viver aquela experiência anterior novamente, é muito provável que haja frustração. Primeiro porque é impossível experienciar a mesma coisa duas vezes, cada instante de vida é único e, quando se vê, já é tudo novo. Segundo porque não se trata de atribuir um significado previamente ao encontro com a coisa em si, pelo contrário, é se permitir olhar sem expectativas, para algo “sem significado”, observar e aguardar até que apareça, que salte aos olhos. Assim pode ser possível ver, partindo de dentro, não um formato ou uma coisa apenas, mas várias que compõem o todo. Vários pedacinhos que juntos não formam uma coisa só, formam a experiência de poder ver tantas coisas, de tantas formas, de tantos ângulos e jeitos que no fim já é uma nova coisa, tendo em vista que viver a experiência é se abrir para uma infinidade de possibilidades e associações que não permitirão que se veja aquela coisa primeira novamente. Está ventando, está mudando a todo o tempo, está em movimento enquanto se observa.
     Assim é a experiência psicanalítica, como olhar as nuvens no céu de nossas mentes. Tal como toda e qualquer experiência que envolve estar vivo, é se permitir olhar para si sem expectativas e conceitos prévios e estáticos, é se disponibilizar a viver uma trajetória que permita estar aberto para se surpreender com o desconhecido, com os diversos e mais malucos significados que podemos atribuir a tudo, inclusive a nós mesmos. Talvez assim seja possível reinventar criativamente e continuamente as experiências e os olhares para a vida.

 

Por: Juliana Chaves - Psicóloga CRP 19/5101 e Psicoterapeuta de orientação psicanalítica em formação pelo NPA.

 

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Psicanálise e Quotidiano é o espaço destinado a publicações de textos curtos, sem cunho teórico, de forma acessível e com reflexões acerca de temas do dia a dia, através do olhar psicanalítico. A coordenação do projeto é de Danilo Goulart.