COVID: O Marco Zero é Hoje

21/12/2020

 

          Uma questão que me acompanha como uma sombra, neste final de 2020: que sentido pode haver no acaso. Até onde vai a sorte, e onde começa a responsabilidade de cada um em seu destino. Como se transformou, a civilização do início do século XXI, a um só tempo, em agente e vítima desse fenômeno acachapante chamado Pandemia de Covid.

          A teoria do caos esclarece que pequenas diferenças nas condições iniciais de um evento podem determinar desigualdades enormes no desenrolar do processo, e o que parece aleatório pode ser o resultado de nuances do passado. Por mais assustador que seja, podemos aplicar essa lógica e imputar o caos atual, que atinge o globo terrestre, a um marco zero, àquele momento em que um humano resolve ingerir um morcego portador de uma zoonose, num macabro misto de ousadia e acaso.

Passam-se vários meses, somam-se mais de um milhão de mortos ao redor do mundo, e o vírus, reles sim, conquista territórios, e dispara como jogador de ponta nesse “War” global. Como um tsunami, os estragos do novo coronavírus não pedem licença e não são de responsabilidade de ninguém, especificamente, ao mesmo tempo que criam, em todos e cada um de nós, um senso aguçado de imputabilidade.

          No romance derradeiro do escritor americano Philip Roth, Nêmesis, acompanhamos a trajetória de Bucky Cantor, rapaz cativante: esportista, altivo, de caráter nobre e generoso. A vida lhe chega já marcada pela tragédia, com a morte precoce da mãe, compensada, em muito, pelos cuidados e afeto inesgotável dos avós, forjando um ser humano admirável. O destino que lhe sorri, abrindo portas incríveis no amor e no labor até seus 20 e pouco anos, é o mesmo que o apunhala, nas páginas seguintes, impedindo-o de servir na Segunda Guerra, como tanto almejava, e, por fim, confrontando-o com o surto de poliomielite em seu país, em sua cidade, em seu bairro, em seu corpo. O círculo fecha-se sobre ele, transfigurando-o, até convertê-lo em um ponto magro. Um ponto final. Fim de vida em vida, que é o pior fim. Que fios são esses que conduzem o rapaz esforçado e merecedor a um destino tão ignóbil e insuspeito? O acaso urde sua trama, mas apóia-se também em fatos, em feitos, em portas que são abertas ou fechadas pelo personagem.

          Da mesma forma, assolados pela pandemia como estamos, o fator acidental e imprevisível do contágio viral não deveria eximir cada indivíduo da responsabilidade pessoal e do protagonismo na vida pública. Adultos, idosos e crianças sem máscaras em ambientes públicos, hoje, assombram-me. Como uma Cassandra, enxergo marcos-zero ambulantes, e questiono a razão de tamanha indiferença.

          Simples descuido? Divergência de opinião? Negação prepotente?

        Essas e outras hipóteses disputam espaço com o desconcertante fenômeno descrito por Freud, em que alguns indivíduos “procuram inequivocamente a si mesmas como um objeto amoroso”, narcisicamente impassíveis às tormentas que podem causar em outros pagos.

 

Idete Zimerman Bizzi

Psiquiatra

Psicanalista,

Membro da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre.

Coordenação: Danilo Goulart