Teria W. R. Bion lido J. L. Borges?

24/01/2014

Teria W. R. Bion lido J. L. Borges?

O vértice estético-literário[1]

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“Se a intuição é tão importante, por quê

o treinamento e a educação de um analista

não incluem atividades artísticas e poesia em particular?

Bion - provavelmente porque se precisa de tempo, e não porque o tema careça de importância. Espera-se que o candidato tenha adquirido experiência estética antes de começar sua formação psicanalítica.”

W. R. Bion em Seminarios de

Psicoanalisis. Editorial Paidós,

Buenos Aires,1978, pag.79.

“Por que não estudam diretamente os textos? Se esses textos lhes agradam muito, que bom; e se não lhes agradam, abandonem a leitura, já que a idéia de leitura obrigatória é uma idéia absurda: seria o mesmo que falar em felicidade obrigatória. Acredito que a poesia é algo que se sente, e se vocês não sentem a poesia, se não têm um sentimento de beleza, se uma história não os leva ao desejo de saber o que aconteceu depois, o autor não escreveu para vocês.”

J. L. Borges em A Poesia - Obras Completas III, Editora Globo, 2006.

W.R.Bion deixou clara a importância de se observarem os fenômenos da mente sob três vértices de observação e estudo: o vértice científico, o místico-religioso e o estético-artístico. Neste trabalho, enfocarei especificamente o vértice estético-literário, extraindo e pensando vinhetas em escritos de Bion e, principalmente, de Jorge Luis Borges. Sabemos que, na biblioteca de Bion, autores como Milton, Dante, Shakespeare, Keats, Coleridge, Wordsworth, Erza Pound, William Blake e outros tantos poetas de língua inglesa estavam presentes, assim como na de Borges, e faziam parte de suas leituras. Desconhecemos se Borges estava lá.

Há uma tentativa por parte de Meg Harris (2009) em ver no “Tigre”, de William Blake, semelhanças com o “Tigre”, de Borges, mas não citações de Borges nos escritos de Bion em sua vasta obra - textos teóricos, supervisões, conferências e seminários clínicos – em que sempre esteve presente a necessidade do rigor e da disciplina da observação dos fenômenos da realidade psíquica, método que requer intuição e capacidade estética do analista, entre outros requisitos.

Obviamente, não estou negando a importância da questão científica. Não me ocupo aqui em dar maior ênfase às vinhetas de trabalhos de Bion, e sim em apresentar Borges como um pensador, além de escritor e poeta. Uma pessoa que, coincidentemente, lia e relia os autores de língua inglesa, acima mencionados, e sempre procurava tirar proveito do trabalho deles para desenvolver e expandir suas ideias de labirinto, uma metáfora que o acompanhou por toda sua vida à procura da verdade. Apreender a natureza humana, o sofrimento, a dor, a vitória e a capacidade do homem em procurar sempre o si mesmo, ainda que sempre acompanhado e confundido com o outro; essa duplicidade de Eus ou esse mistério da alma humana ter sempre uma natureza limítrofe - consciência-inconsciência, vida-morte, realidade interna-realidade externa, sonho-realidade. A propósito, um dos poetas visionários, William Blake, nos ensina que “sem os contrários não há progressão”, em seu belo poema O casamento do céu com o inferno.

Enfatizo, nesta comunicação, vinhetas e passagens, principalmente de três obras de Borges: Os ensaios sobre a poesia, Sobre o pesadelo e A memória de Shakespeare, além de fragmentos de outros escritos.

O sonho

Quando os relógios da meia-noite prodigarem

Um tempo generoso,

Irei mais longe que os vogas-avante de Ulisses

À região do sonho, inacessível

À memória humana.

Dessa região imersa resgato restos

Que não consigo compreender:

Ervas de singela botânica,

Animais um pouco diferentes,

Diálogos com os mortos,

Rostos que na verdade são máscaras,

Palavras de linguagens muito antigas

E às vezes um horror incomparável

Ao que nos pode conceder o dia.

Serei todos ou ninguém. Serei o outro

Que sem saber eu sou, o que fitou

Esse outro sonho, minha vigília. E a julga,

Resignado e sorridente.

J. L. Borges, Poesia.

Companhia das Letras, São Paulo, 2009.

Neste poema, Borges, que sempre se dedicou ao tema dos sonhos em seus trabalhos, mostra-nos sua profunda capacidade de expor sobre a angústia do querer-se atingir a realidade última, mas ao tempo em que sabe que é tarefa impossível, isto não o faz desistir, tanto como Freud e Bion. Sabemos que ela está lá, no “infinito informe”, de Milton, mas nunca a atingiremos, o que não nos mata a curiosidade, a ousadia e a coragem de seguirmos em frente. “Dessa região imersa resgato restos, que não consigo compreender.” O inconsciente é essa região, na investigação psicanalítica.

Wilfred Ruprecht Bion e Jorge Luis Borges foram dois pensadores do Século XX envolvidos na busca da essência do Ser, dois visionários em seus campos de investigação. Bion chega ao fim de sua obra escrevendo, sob a forma de “literatura fantástica”, a sua visão abrangente do conhecimento técnico e teórico da psicanálise. Borges fez de sua vida de poeta, escritor e ensaísta um misto de realidade e ficção, sempre apontando para o desconhecido da alma humana. Se o primeiro orientava-se em direção a O, a coisa-em-si de Kant, as formas ideais de Platão e a Teoria da Incerteza de Heisenberg, Borges passou sua vida entremeado entre alegrias e pavores diante do Espelho, diante da beleza e do horror do Tigre, lendo e relendo obras canônicas, resgatando autores, principalmente os poetas ingleses, os mesmos que estavam na biblioteca de Bion.

Em seus escritos, dois pensadores que, antes de afirmarem algo categórico, sempre duvidavam do saber instituído e afirmavam que as teorias encobriam a possibilidade da leitura dos homens, a leitura das pessoas, tentando apreender a essência ou dela sempre se aproximar. São obras insaturadas, obras provocativas, pois não se conformam nem se entusiasmam com ideias fundamentalistas de escolas, tanto nas artes como na ciência. Platão e Sócrates eram os esteios para que suas ideias não se fechassem e se tornassem “crenças”. Para isto, os dois se preocupavam com a disciplina da criação: Borges, na feitura dos versos e de sua prosa; Bion, na delicadeza de respeitar a observação dos fenômenos da alma humana.

James Grotstein (2010) afirma que Bion somente tinha uma certeza na vida: a certeza de sua ignorância.Aliás, a única certeza de Bion é que nada é certo, daí a metodologia psicanalítica poder gerar “tolerância às incertezas” como suporte da capacidade negativa. Borges, citado por Solange Fernández Ordóñez (2009), em seu belo livro “O olhar de Borges – uma biografia sentimental”, escreve: “Essa poderia ser a sua maneira de nos transmitir que a condição essencial da vida reside no misterioso, um modo de expressar o inalcançável das explicações finais, um recurso para mostrar o inevitável paradoxo do ser humano: o ato de buscar a razão de nossa existência, mesmo sabendo que nunca haveremos de encontrá-la.” Enfim, a título de preâmbulo, deixo uma ideia na poética de Borges e no pensamento de Bion:

Heráclito

Heráclito caminha pela tarde"

De Éfeso. A tarde o abandonou,

Sem que sua vontade o decidisse,

Na margem de um rio silencioso

Cujo destino e cujo nome ignora.

Há um Jano de pedra e alguns álamos.

Olha-se no espelho fugitivo

E descobre e trabalha a sentença

Que gerações e gerações de homens

Não deixarão cair. Sua voz declara:

“Ninguém desce duas vezes às águas

Do mesmo rio”. Detém-se. E então sente

Com o assombro de um horror sagrado

Que também ele é um rio e uma fuga.

Deseja recobrar essa manhã

E sua noite e véspera. Não pode.

Repete a sentença.Vê-se impressa

Em futuros e claros caracteres

Em uma página qualquer de Burnet.

Heráclito não sabe grego. Jano,

O deus das portas, é um deus latino

Heráclito sem ontem nem agora.

É um simples artifício que sonhou.

Um homem cinza às margens do Red Cedar,

Um homem que entretece decassílabos

Para não pensar tanto em Buenos Aires

E nos rostos queridos. Falta um."

EastLansig, 1976.

Borges tinha a consciência da transitoriedade e, além disso, sabia que somos mutantes. Não se é mais hoje o que se foi ontem. A vida é sempre uma corrente transformadora, transformadora do ser, quando se tira proveito da experiência. Sua experiência revela que, mesmo a cada dia que perdia a visão (o sentido da visão), desenvolvia seus recursos pessoais para apreender o mundo interno e intuir idéias já embrionárias em sua mente. Ordóñez nos lembra, refletindo sobre a metáfora do rio de Heráclito: “Ao longo da vida nossa imagem mudará, e aquilo que nos revele, sejam vidros espelhados, água, olhar dos outros, retrato ou fotografia, e ainda os sonhos, irá assinalando as sucessivas transformações e irá marcando que cada vez somos outro para observar, conhecer e aceitar” (pag.72). É claro que se trata de uma leitura borgiana da autora.

A experiência analítica se enriquece a cada momento com os conceitos de “transformações”, mudanças que nos fazem aproximar do nosso-ser-real, do nosso O, da nossa Realidade Última, mesmo que não a atinjamos, mas é nesse rio que podemos navegar sempre em busca da Verdade. Na obra de Borges apreendem-se essas questões sobre a condição humana. Seu pensamento revela que somos ínfimos, limitados e tênues, mas que, ao longo da nossa jornada, a vida se torna mais bela e apavorante pois, a cada momento ou, de circunstâncias em circunstâncias, poderemos deixar de ser, vir-a-ser e ser novamente, mas é nesse movimento oscilante que se desenvolve e se aprimora a consistência de Eu.

Heráclito, em Borges, é instigante, é alguém como todos nós, vindo da condição de dependência, mas que, curioso, corajoso e ousado, procura ser (“E então sente com o assombro de um horror sagrado que também é um rio e uma fuga.”). A verdade, de fato, é que somos curiosos, por instinto, e desejosos e apavorados pelo intuito de conhecermos o novo. Se existe alguma experiência bela e terrorífica é aquela desenvolvida numa análise, onde experimentamos nossas mudanças e percebemos que não há retorno. Não se mergulha, flutua ou nada no mesmo rio. A transformação é revolução interna que nos remete à experiência de sermos novos a cada momento, mas essa novidade, essa mudança, nos renova e amedronta, pois sabemos que depois dela não há mais como pararmos, a não ser que a mudança catastrófica nos direcione para a loucura como novo arranjo de nos livrarmos, ou melhor, de tentarmos nos evadir daquilo que somos.

Finda esta introdução, gostaria de adentrar nos textos acima citados, de Borges, no sentido de procurar, explorar e aprender com o poeta questões pertinentes ao trabalho do psicanalista, principalmente naquilo em que ele, acredito, contribui para a observação da alma humana, eixo de pesquisa e disciplina científica encontrada nos trabalhos de Bion. Nesse sentido, vejo que a questão do vértice estético também remete à pesquisa e à importância que a criação artística, a apreensão do verso e a disciplina para intuir sentimentos e emoções humanas do poeta, têm para nós, psicanalistas, para o aprimoramento do nosso método de pesquisa psicanalítica.

Primeiro recorte: o pesadelo

Em sua obra “As Sete Noites”, de 1980, Borges escreve um belo ensaio sobre o pesadelo e, logo em seguida, tece alguns pensamentos sobre os sonhos. “Não podemos examinar os sonhos diretamente. Podemos falar da memória dos sonhos. E, possivelmente, a memória dos sonhos não tem correspondência direta com os sonhos.” Outros, ao contrário, acreditam que melhoramos os sonhos; se pensarmos que o sonho é uma obra de ficção (eu acredito que seja), é possível que continuemos fabulando, logo ao despertar, e depois, quando o contamos. Ao psicanalista cabe não esquecer que jamais chegamos à essência última do fenômeno-sonho. Por mais que interpretemos, por mais que queiramos significar e explicar essa “obra de ficção”, ela nos vence na medida em que continua, na vigília, o trabalho onírico. Logo adiante, Borges, citando Frazer escreve: “Segundo Frazer, os selvagens não fazem distinção entre a vigília e o sonho. Para eles, os sonhos são um episódio da vigília.” Enfim, sonhamos diurna e noturnamente, como dizia Bion, dando-nos a entender que o psicanalista teria que ouvir seu analisando como se estivesse ouvindo o sonho, o sonho da sessão.

Shakespeare também afirmou que “somos feitos da mesma matéria de nossos sonhos”, somos uma permanente criação artística, ficcional, que, através de uma simbologia e de uma linguagem sofisticadamente estética, criamos nosso romance. Narramos nossos personagens e adentramos numa história que traz os nossos antepassados e as nossas experiências ainda não nomeadas, e uma forma de podermos nomeá-las é treinarmos a intuição, base da apreensão estética, poética, metafórica e onírica.

Quando examina a origem da palavra pesadelo, Borges caminha por vários sentidos etimológicos: em espanhol, pesadilla; em grego, efialtes. Efialtes é o demônio, é a ação infernal do terror onírico. No latim, continua, vai achar a palavra incubus: literalmente escreve: “O incubo é o demônio que oprime o adormecido e inspira-lhe o pesadelo.” É no inglês que o sentido fica mais forte – thenightmare – significa a “égua da noite.” Mas o sentido mais abrangente para o poeta, ele vai buscar na raiz niht mare ou night mare, o demônio da noite. Se, por um lado, a “força demoníaca”, a força das pulsões, constitui a matéria prima do sonhar, e aqui estou me referindo “à parte psicótica da personalidade”, por outro lado, ainda Borges é capaz de tirar proveito dos seus pesadelos quando prioriza em seus sonhos, dois tipos de pesadelos: um,“o pesadelo do labirinto” e o outro,“o pesadelo do espelho.” Labirintos e espelhos são experiências oníricas que nosso autor relaciona com questões da condição humana. No labirinto, observamos vários caminhos e arranjos percorridos por nossa mente em direção a saídas para pensarmos e agirmos; no pesadelo do espelho, aponta-se para o horror de olhar para si mesmo. Olhar que revela, ora enganos (máscaras), ora o verdadeiro rosto, a verdadeira alma. A vida e a análise nos ensinam isto; é um jogo permanente de surpresas, sustos, alegrias, prazer e dor quando estamos sempre entrando em contato com nossa realidade interna e externa.

Borges chegou a afirmar algo, de suma importância, para nós psicanalistas: “Seja como for, nos pesadelos, o importante não são as imagens. O importante, como descobriu Coleridge (poeta de Bion e Borges) - decididamente, estou citando os poetas - é a impressão de que os sonhos produzem. As imagens são de menos, são efeitos. Já disse, no início, que tinha lido muitos tratados de psicologia nos quais não encontrei textos de poetas, que são singularmente iluminadores.”

Em diálogos de Borges e Osvaldo Ferrari, no volume “Sobre os Sonhos e Outros Diálogos” (2009), há uma passagem muito ilustrativa que mostra a intimidade que Borges tinha com a função do sonhar. Escreve ele: “Agora, se o fato de sonhar fosse uma espécie de criação dramática, então aconteceria que o sonho é o mais antigo dos gêneros literários, inclusive anterior à humanidade, porque, como lembra um poeta latino, os animais também sonham. E viria a ser um fato de índole dramática, como uma peça na qual somos o autor, o ator e também o edifício, o teatro. Ou seja, à noite, somos todos, de alguma maneira, dramaturgos.” Bion nos deu outra versão, a atividade onírica da vigília, e, assim, poderíamos afirmar que durante a noite e o dia somos dramaturgos.

Na parte final do poema “O Sonho”, Borges expande a noção do onírico e da função do sonhar, como comunicação do inconsciente, quando escreve: “Serei todos ou ninguém / serei o outro que sem sabê-lo sou / aquele que olhou esse outro sonho, minha vigília / a julga, resignado e sorridente.”

Borges foi alguém que lia muito, lia mais do que escrevia, fazia questão de enfatizar que era mais um leitor do que um escritor. Vários autores canônicos, filósofos, artistas e pensadores faziam parte de sua imensa biblioteca. Citando Thomas Browne, diz ele que “os sonhos dão-nos uma idéia de excelência da alma, já que a alma está livre do corpo e dá de brincar e sonhar.” Bela passagem que nos remete a pensar que a disciplina analítica de nos abster, o máximo possível, das luminosidades exteriores (o grifo é meu), da corporeidade das atuações e estímulos, dificulta e põe obstáculos ao sonhar do analista e do analisando. Petrônio, ainda citado por Borges nesse mesmo ensaio, dizia: “quando a alma está livre da carga do corpo, brinca.”

Ainda que haja forças repressivas dentro do sonhar, sonhar é realmente uma construção imagética repleta de significados, funções e finalidades no trabalho analítico. Enquanto Bion nos fala da possibilidade das experiências serem digeridas e transformadas em sonhos, os poetas parecem que fazem esses atos a cada momento. Os poetas são capazes de extrair das suas “pré-concepções”, realizando-as no conhecimento, tanto as nossas alegrias, amores e satisfações quanto as nossas tristezas e desesperos. Concluo esta digressão, citando, mais uma vez, Borges: “E se os pesadelos forem estritamente sobrenaturais?; se os pesadelos forem frestas do inferno?; por que não?; tudo é tão estranho que até isto é possível.”

Segundo recorte: a poesia

No Prólogo do livro “A Rosa Profunda”, Borges (1975) escreve: “A missão do poeta seria restituir à palavra, ao menos de modo parcial, sua primitiva e agora oculta virtude. Todo verso teria dois deveres: comunicar um fato preciso e tocar-nos fisicamente, como a proximidade do mar.” Adiante prossegue: “No fim de tantos – e demasiados anos de exercício de literatura, não professo uma estética. Por que acrescentar, aos limites naturais que nos impõem, o hábito de uma teoria qualquer? As teorias, como as convicções de ordem política e religiosa, não passam de estímulos. Ao percorrer as provas deste livro, noto com certo desagrado que a cegueira ocupa um lugar lastimoso que não ocupa minha vida. A cegueira é uma clausura, mas também é uma libertação, uma solidão propícia às invenções, uma chave e uma álgebra.”

Nosso escritor sabia e estava fornecendo um conselho, uma advertência: as crenças e as teorias usadas, como defesas contra a ignorância, têm pouca importância. O pensamento livre, o conhecimento a partir da liberdade, da “cegueira”, lembra-nos Freud falando de “cegar-se artificialmente” e Bion enfatizando a teoria do negativo.

Borges intuía que o poeta, tal como Platão, já admitia que as experiências e os fatos urgiam a necessidade de serem aprendidos. Quando ele escrevia, dizia Borges, tinha a sensação de algo pré-existente: “as coisas são assim. São assim, mas estão escondidas, e meu dever de poeta é encontrá-las.”

Do psicanalista espera-se algo semelhante. Desenvolvemos uma atitude de escuta, intuímos, e esperamos, livres de regras, desejos, intenções, que as idéias brotem em nossas mentes para formularmos conjeturas, palpites e formulações sobre a realidade psíquica do nosso analisando. No referido ensaio, a título de ensino, aparece uma idéia genial de Platão. Dizia ele que a poesia é uma experiência estética. Algo assim como a revolução no ensino. Que seria de um analista sempre em formação, sem ter e desenvolver uma capacidade estética? Será que podemos ensinar? Penso que podemos ajudar a desenvolver essa capacidade, caso exista, e, nesse sentido, os escritores, os poetas e os artistas nos subsidiam de disciplina metodológica. Veja o que nosso autor, adiante, nos alerta: “Acredito que a poesia é algo que se sente, e se vocês não sentem a poesia, se não têm um sentimento de beleza, se uma história não os leva ao desejo de saber (curiosidade) (o grifo é meu), o autor não escreveu para vocês”. O fato estético é algo tão evidente, tão imediato, tão indefinível, quanto o amor, o sabor da fruta, a água.”

A humildade de Borges, diante do mistério do pensar, diante da capacidade de sonhar e de se colocar grávido para receber o verso, mostra a atitude de tolerância, espera e paciência que subsidia uma conjectura interpretativa do psicanalista. A poesia reside no relato do analisando, na narrativa simples, mas simbólica, de sua linguagem, ou mesmo na incapacidade de nomear sua experiência, fenômeno que, às vezes, reflete que a mente ainda não pensa, mas apresenta sinais de uma gestação em busca do não-pensado. O psicanalista tira proveito da sua sensibilidade poética para sonhar o sonho do analisando e poder comunicar, de uma forma simples, corriqueira, mas colorida pelo sentido estético, o sentido encoberto da consciência sensorial. O jogo analítico é um jogo de escuro-claro, consciência-inconsciência, vazio-presença, silêncio-verbalização.

Browning, citado por Borges, adverte: “Quando nos sentimos mais seguros, ocorre algo, um pôr-do-sol, o fim de um coro de Eurípedes, e, de novo, estamos perdidos.” O labirinto que acompanhou Borges em todas as suas elaborações em direção à procura da Verdade, expandia seu pensamento, abria alternativas, criava novos caminhos, esperava que novas conjecturas lhe viessem em forma de verso e prosa. A frase que ora leio, nesse esplêndido ensaio sobre a poesia, finaliza, de forma didática, para nós psicanalistas, no momento da inspiração criadora:“rosa é sem porque; floresce porque floresce.”

Em Harvard, nos anos de 1967 e 1968, Borges, convidado para falar sobre poesia, conferências transformadas no livro “Esse ofício de verso”, traz ideias tiradas da sua arte para serem usadas na disciplina de compor. A partir da sua humildade em dizer que duvidava se tinha “revelações a dizer”, lembrava reflexões de sua vida de poeta: “Sempre que folheava livros de estética, tinha a desconfortável sensação de estar lendo as obras de astrônomos que nunca contemplavam as estrelas. Quero dizer, eles escreviam sobre poesia como se a poesia fosse uma tarefa, e não o que é na realidade: uma paixão e um prazer... Passamos à poesia, passamos à vida. E a vida, estou certo, é feita de poesia. A poesia não é alheia – a poesia, como veremos, está logo ali, à espreita. Pode saltar sobre nós a qualquer instante.”

A ideia deste trabalho é a de direcionar o leitor para questões metodológicas e técnicas em psicanálise, privilegiando o vértice estético-artístico. Ao psicanalista se faz necessário desenvolver sua sensibilidade estética e sua capacidade intuitiva que tanto fundamenta o ofício dos artistas. O “oficio do verso” (Borges, 2007), assim como o trabalho de um músico ou de um pintor, ofertam ao psicanalista uma disciplina e uma atitude de trabalho, sem contudo minimizar a importância do método científico.

Bion, após transitar pela ciência, matemática, física, religião, filosofia e, principalmente, por uma atitude epistemológica constante, termina sua vida convencido de que a linguagem para descrever suas observações da alma humana e suas questões e controvérsias sobre psicanálise é a linguagem literária. A obra “Uma Memória do Futuro” é a convicção bioniana de que, se ainda não temos uma linguagem, e penso que ainda estamos tentando procurar uma linguagem comum, a forma literária é uma saída para captarmos e intuirmos nossa realidade psíquica e a realidade externa, além de permitir-nos descrever mais profundamente os estados de alma humana. Bion deixou um desafio em sua forma de trabalhar: desenvolvermos a capacidade de pensar. Pensar a experiência emocional, aprendendo e transformando esse conhecimento em direção à Verdade. Neste contexto, lembro um belo poema de Borges em seu livro “A Cifra”, de 1981, inspirado em William Blake, poeta comum de Borges e Bion:

Blake

Onde estará a rosa que em tua mão

Prodiga, sem saber, íntimos dons?

Não está na cor, porque a flor é cega,

Nem na doce fragrância inesgotável,

Nem no peso da pétala. Essas coisas

São alguns poucos e perdidos ecos

A rosa verdadeira está bem longe.

Pode ser um pilar ou uma batalha

Ou um firmamento de anjos ou um mundo

Infinito, secreto e necessário,

Ou o júbilo de um deus que não veremos

Ou um planeta de prata em outro céu

Ou um arquétipo horrível que não tem

A forma dessa rosa.

Espero, com esta comunicação, ter aproximado dois autores: um psicanalista e o outro, um artista, poeta, ensaísta e pensador: Bion e Borges apontam para a importância do vértice estético-artístico em psicanálise. No primeiro momento, como um recurso para a observação, como técnica de observação; e, no segundo, como outra alternativa para apreender a experiência emocional humana. Afinal, a psicanálise, hoje, não há dúvidas, é um dos olhares, método e recurso para apreender a realidade inconsciente, e não a única. Bion expandiu essa visão e, nesse sentido, somos gratos a autores como J. L. Borges e tantos outros que nos auxiliam, nos ensinam e nos habilitam também na apreensão dos fenômenos da mente humana. Oxalá tenhamos a humildade de aprender com os escritores e poetas e, com isto, expandirmos, desenvolvermos e aprofundarmos nossa capacidade intuitiva e observacional em psicanálise.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bion, W. R. Seminariosclinicos y cuatro textos. Editorial Paidós, Buenos Aires,1978.

Bion, W. R. Uma memória do futuro. Ed. Imago, 1996.

Borges, J. L. A cifra. In: Poesia. Ed. Cia. das Letras, 2009.

Borges, J. L. A poesia - Obras completas III, Editora Globo, 1999.

Borges, J. L. A rosa profunda. In: Poesia. Ed. Cia. das Letras, 2009.

Borges, J. L. As sete noites - Obras completas III, Editora Globo, 1999.

Borges, J. L. Esse ofício de verso. Ed. Cia. das Letras, 2007.

Borges, J. L., Ferrari, O. Sobre os sonhos e outros diálogos. São Paulo: Ed. Hedra, 2009.

Grotstein, J. Um facho de intensa escuridão. Porto Alegre: Ed. Artmed, 2010.

Harris, M. As musas da psicanálise. In:Revista Memória da psicanálise, vol. 6, São Paulo: Ed. Mente & Cérebro, 2ª. Ed., 2009.

Ordóñez, S. F. O olhar de Borges – uma biografia sentimental. Ed. Autentica, 2009.

Resumo

O autor tenta, nesta comunicação, aproximar dois pensadores contemporâneos: J. L. Borges (1899-1986) e W. R. Bion (1897-1972). Coincidentemente, na biblioteca dos dois encontramos semelhantes leituras e autores, principalmente no que toca à literatura, especificamente a de língua inglesa. O artigo pretende chamar a atenção dos psicanalistas para a importância do vértice estético-literário. Mostra a importância do pensamento de Borges, sua disciplina de ofício e recortes com os quais o autor espera colaborar para a formação de um psicanalista pelo viés de Bion. Ressalta também a capacidade de observação dos fenômenos da alma humana, a importância da intuição e dos recursos estéticos, como tarefa metodológica, e o treino, no que toca ao psicanalista, da necessidade de se dedicar ao estudo dos autores ditos “canônicos” em literatura, a fim de desenvolver, desse modo, sua sensibilidade para apreender aquilo que se encontra além do dito, do sensorial e do manifesto.

Palavras-chave: literatura, psicanálise, método de observação, formação do psicanalista.

Abstract

In this communication, theauthorattemptstobringtwocontemporarythinkers: J. L. Borges (1899-1986) and W.R. Bion (1897-1972). Coincidentally, in bothlibrarieswe are abletofind similar readingsandauthors, especiallywhen it comes toliterature, specificallyEnglishliterature. The articleintendstodrawtheattentionofpsychoanalyststotheimportanceoftheaesthetic-literaryvertice. It also shows theimportanceof Borges’ thought, hiswork discipline and clippings withwhichtheauthorhopestocontributetotheformationof a psychoanalystthroughBion’sconcepts. Thisworkalsohighlightstheabilityto observe thehuman soul phenomena, theimportanceofintuitionandaestheticresources, as a methodologicaltask, andthepsychoanalyst training relatedtotheneedto devote tothestudyofthe“canonical” authors in literature, in ordertodevelophis /hersensitivitytograspwhat lies beyondthesensoryandthemanifest.

Key-words: literature, psychoanalysis, observationmethod, psychoanalystformation.

Resumen

El autor intenta, enestacomunicación, aproximar dos pensadores: J.L.Borges(1899-1986) y W.R.Bion (1897-1972).Coincidentemente, enla biblioteca de los dos encontramos lecturas y autores semejantes, principalmente enlo que dicerespecto a literatura, especifícamente de lalenguainglesa.El artículo pretende llamarlaatención de lospsicoanalistas para la importância del vértice-literário.Muestrala importância delpensamiento de Borges, su disciplina de ofício y recortes conloscualesel autor espera colaborar para laformación de um psicoanalista por elbies de Bion.Resaltatambiénlacapacidad de observación de los fenômenos del alma humana, la importância de laintuición y de los recursos estéticos, como tarea metodológica, y entrenamiento, enlo que toca al psicoanalista, de lanecesidad de dedicarse al estudio de los autores dichos “canônicos” enla literatura, a fin de desarrollar, de esamanera, susensibilidad para aprehenderaquello que se encuentra más allá de lodicho, de lo sensorial y de lomanifiesto.

Pallabras-llave: literatura, psicoanálisis, método de observación, formacióndelpsicoanalista.

Carlos de Almeida Vieira

Membro Efetivo e Analista Didata IPA - NPA/SPRPE/SPB

[email protected]

data de publicação: 24/01/2014

[1] Trabalho apresentado no Congresso Internacional de Psicanálise e VII Encontro Ítalo Brasileiro de Psicanálise, 17 e 18 de agosto de 2012, em Aracaju-SE.