Psicanálise e Comunicação

07/03/2014

Ana Claudia Zuanella - Psicanalista - Membro Titular e Didata da Sociedade Psicanalítica do Recife - Mestranda em Psicanálise pela Universidade Católica de Pernambuco - E-mail: [email protected]

Psicanálise e Comunicação.

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“A técnica analítica é, como já disse, um método para

chegar a ser o que se é, posto que seu fim é devolver ao

ser o que é dele e o que, no caminho de sua vida, no

interjogo de seus conflitos internos e sucessos externos,

ele perdeu ou não pode desenvolver”.

(Racker, 1988)

Psicanálise e comunicação... O que poderia ser dito a respeito da interface entre estes dois campos? Poderia falar sobre o efeito da mídia no mundo atual, de como a comunicação através desses meios interfere na vida e valores cotidianos, ou poderia falar sobre o poder que o marketing e a propaganda – nas suas formas subliminares de comunicação – exercem sobre nossas escolhas, poderia ainda falar sobre a dificuldade de comunicação entre os homens, entre as gerações.

Mas sabia que teria que escolher um viés para abordar, caso contrário, esta se tornaria nada além de uma comunicação superficial e vaga. Então optei por outro caminho, optei por buscar aquilo que é único numa forma de comunicação em especial: a comunicação na sessão analítica.

Na minha necessidade de escolha de um assunto a tratar, deparei-me com o que se repete cotidianamente nos nossos consultórios. O paciente escolhe algo, dentre tantas opções, para nos relatar. Assim como a escolha do tema pelo analisando é sobredeterminada, também o é o tipo de comunicação que se estabelece dentro deste espaço. É uma comunicação específica da Psicanálise, posto que é compreendida e trabalhada de acordo com a teoria e o método psicanalítico.

É sobre a comunicação que demarca a Psicanálise que falarei hoje com vocês e tentarei mostrar como esta comunicação também ajudou a construir a teoria que a embasa.

Hoje em dia, no contexto rápido e efêmero que caracteriza a atualidade pode-se compreender porque a Psicanálise é considerada um dos últimos redutos de intimidade que ainda restam. Se no começo de século passado a resistência à descoberta de Freud recaía nas suas teorias sobre a sexualidade, atualmente, com a sexualidade tão banalizada, o que causa estranheza e certa crítica à Psicanálise é o fato de ser tão demorada, tão privada e íntima, quando tudo a sua volta requer exatamente o contrário.

Muitas facetas caracterizam este reduto de “intimidade consigo mesmo”, digamos assim, a começar pelo instrumento terapêutico empregado: a palavra. Ao contrário de outras formas de tratamento, a Psicanálise utiliza-se da fala. No entanto, é diferente de qualquer outro tipo de conversa. Nela, alguém movido pelo seu sofrimento, se dispõe a falar tudo de si para outro que ele mal conhece. Para aqueles que poderiam tender a compará-la a uma confissão Freud faz uma ressalva: “Na confissão, o pecador relata aquilo que sabe; na análise, o neurótico deve contar mais”. Ou seja, numa análise o paciente relata através de sonhos, sintomas, associações mais do que supõe estar comunicando, mais do que sua percepção consciente imagina.

Portanto àquele que procura o tratamento psicanalítico é pedido que fale. Porém é requisitado um tipo muito particular de verbalização, o analisando deve falar livremente, dizer tudo o que lhe vier à mente, sem censura, sem inibição, sem preocupação com juízo de valor. No entanto, isso não significa que ele poderá atender a esse pedido, como falarei adiante.

O psicanalista, por sua vez, ao contrário de um ouvinte ou interlocutor qualquer não está interessado no encadeamento lógico do pensamento, ele está buscando o contrário, ele busca aquilo que se esconde atrás da lógica racional, da consciência. A psicanálise não se detém no relato em si, nos fatos narrados, na realidade material, ela busca o relato do desejo, das fantasias, dos afetos, da pulsão. Em contrapartida à associação livre do analisando, há a atenção flutuante do analista que consiste essencialmente em um não fixar a atenção em nenhuma direção determinada, criando uma situação interna na qual ele esteja disposto a admitir em sua consciência todos os pensamentos e sentimentos possíveis, favorecendo assim o acesso ao Inconsciente do analisando. Ele usa as palavras ditas pelo paciente para perceber o que não é dito, o que se esconde. As palavras são utilizadas para interpretar. Neste caso, como num espiral, ele utiliza a interpretação para manter a livre associação. Ele faz uso do próprio diálogo analítico a fim de mantê-lo ativo. Pois falar livremente, apesar de parecer fácil, não é. Em primeiro lugar porque o “livremente” é uma mera expressão, já que a cadeia associativa da comunicação segue um encadeamento inconscientemente determinado, o qual a psicanálise pretende seguir do fim para o começo. E em segundo lugar porque a censura jamais é suspensa. O paciente resiste por natureza, porque seu aparelho mental foi criado para ele se defender. Cabe ao analista superar essas resistências, interpretando-as.

“A exatidão de uma interpretação é julgada não pelo fato de ela ter outros efeitos no analisando, de este recusá-la ou aceitá-la, ou de o analista estar satisfeito com ela, mas de ela facilitar ou não a produção de mais material. Quer dizer, a interpretação é efetiva apenas se ela supera, de certo modo, a resistência.”(Burgoyne, 2001).

Já dizia Freud (1917) nas “Conferências Introdutórias” que

“A superação das resistências constitui a função essencial da análise e é a única parte do nosso trabalho que nos dá segurança de havermos conseguido algo com o paciente”.

Como sabemos, Freud construiu a Psicanálise calcado nas suas observações clínicas, mostrando como a prática e a teoria estão perenemente interligadas e também como esse diálogo específico da sessão analítica teve também a função de possibilitar descobertas e explicá-las. Isso aconteceu, por exemplo, com a percepção da resistência, a qual tem um lugar especial na psicanálise, pois aponta para um outro mecanismo muito caro à compreensão do psiquismo: o recalque. Foi através do fenômeno clínico da resistência que Freud chegou ao conceito metapsicológico do recalque, “a pedra angular sobre a qual repousa todo o edifício da Psicanálise” (Freud, 1914). Com a descoberta do recalque descortinou-se um mundo de impulsos, fantasias e sentimentos que desde a primeira infância atuam no psiquismo humano. Freud chegou a ele através de uma dificuldade que surgiu quando ele abandonou a hipnose pela livre-associação. Ao contrário do que ele esperava, as pacientes, em especial uma, Elisabeth von R., lhe mostraram que lhes era impossível colaborar inteiramente com a nova técnica e portanto com sua cura. Essa situação paradoxal levou Freud a deduzir que algo era penoso demais para ser recordado e que aquilo que impedia o acesso a essas idéias deveria ser o mesmo, que no passado, atuou gerando o sintoma. Ele assim escreveu a respeito:

“As mesmas forças que hoje se opõem à reintegração ao consciente do que foi esquecido, são, seguramente, as mesmas que provocaram, no momento do traumatismo, o esquecimento e recalcaram no inconsciente os incidentes patogênicos. Eu chamei de recalque a este processo por mim postulado e o considerei como comprovado pela inegável existência da resistência.” (Freud, 1910).

A partir da percepção da resistência na sessão analítica descobriu-se uma série de mecanismos que o aparelho mental cria na sua necessidade de rejeitar as pulsões geradoras de conflito. Existe uma força que se opõe à lembrança, e à dor a ela associada, por isso ela tende a manter o recalque e como conseqüência se opõe ao trabalho do analista o qual induz o paciente a lembrar. Antes de interpretar as pulsões seria necessário interpretar as resistências e com isso promover o acesso aos impulsos. Podemos dizer, por conseguinte, que à primeira formulação topográfica da indicação técnica de tornar consciente o inconsciente somou-se uma segunda indicação, de natureza dinâmica, de interpretar resistências e defesas. (Freud, 1914).

Podemos entender a resistência à comunicação analítica como uma luta entre uma parte do paciente que tenta se livrar do sintoma e outra que quer mantê-lo. Ou como escreve Betty Joseph (1986):

“Os pacientes procuram análise porque estão insatisfeitos com o jeito como vão as coisas e querem mudar, ou querem que as coisas mudem. (...) E, no entanto, há um pavor de mudar. Inconscientemente eles sabem que a mudança que pedem envolve uma movimentação interna de forças, uma perturbação do equilíbrio mental e emocional estabelecido, do equilíbrio dos sentimentos, de impulsos, de defesas e de figuras internas inconscientemente estabelecidas e que se reflete em seu comportamento no mundo externo. Esse equilíbrio é mantido por elementos fina e fortemente articulados, e uma perturbação em parte desse equilíbrio deve reverberar por toda a personalidade. Nossos pacientes inconscientemente captam isso e tendem, portanto a sentir todo o processo de análise como potencialmente ameaçador.” (pág.196).

Um sintoma representa a solução de compromisso para o conflito entre a satisfação do desejo e sua interdição, por isso ele está apoiado nos dois lados da questão, donde se compreende sua força e também a dificuldade do aparelho mental em abrir mão de uma criação tão engenhosa, útil e acima de tudo prazerosa. No entanto, se o sintoma, que mantém o frágil equilíbrio interno, passa a trazer mais dano do que ganho, ele impele o sujeito a procurar ajuda. Mesmo assim, abrir mão do sintoma significa para o paciente renunciar a uma satisfação, mesmo que pela metade, ainda assim uma satisfação possível.

É importante ter em mente que o conflito que se fala em Psicanálise é diferente de um conflito comum, o conflito neurótico é inconsciente, não é uma dúvida, um dilema entre duas situações distintas que se chocam. O conflito patogênico do analisando não deve ser confundido com uma luta normal entre dois impulsos mentais, ambos em pé de igualdade, já que um dos lados está inconsciente e o outro consciente. Por se encontrarem em registros distintos, as forças opositoras não têm como se enfrentarem num mesmo terreno e, portanto o conflito não pode ser conduzido a um desfecho. No máximo há uma solução de compromisso, o sintoma, o qual está longe de ser um desfecho saudável ou adequado para o mesmo.

A análise tem a tarefa de tornar esse embate possível na medida em que supera as resistências, transforma as idéias inconscientes em conscientes, suspende as repressões e assim transforma o conflito patogênico em conflito normal (Freud, 1917).

Para que o conflito que gerou o recalque tenha um outro fim, menos patológico, é necessário que haja sua reedição para uma nova elaboração. Para tanto é preciso buscar o desejo inconsciente que o desencadeou. Na análise o desejo e a angústia a ele relacionada será tema recorrente da comunicação, um tema que adquirirá várias nuances e disfarces, e o analista deverá buscar constantemente ouvi-lo e interpretá-lo.

O desejo infantil e os conflitos subjacentes serão reeditados na análise por meio da transferência, essa será a via privilegiada, na sessão, de acesso ao desejo e ao Inconsciente. A transferência se dá nas diversas relações da vida cotidiana, ela é uma decorrência da nossa forma de ser e nos relacionar que está ligada aos nossos primeiros objetos libidinais. Entretanto no processo analítico ela se torna objeto de trabalho, sendo reconhecida, manejada e interpretada com fins terapêuticos. Esta é mais uma característica que faz da sessão analítica uma comunicação única e ainda mais específica.

Assim como a resistência, a transferência também foi primeiramente percebida como obstáculo ao tratamento. Mas, ao passo que a resistência deve ser abrandada para que a análise prossiga, o mesmo não ocorre com a transferência que ao longo do desenvolvimento da teoria e técnica analítica, deixou de ser vista como empecilho e se tornou uma aliada ao tratamento. A repetição na transferência, inclusive, “mostra, de modo inequívoco, como os distúrbios psíquicos não são meros acontecimentos do passado, mas ‘forças que atuam no presente’” (Rocha, 1993). Essa atualização na transferência faz dela o cenário privilegiando onde os conflitos serão encenados e os sintomas atualizados, numa experiência na qual o analisando entra em contato mais direto com a veracidade do seu desejo, revelando sua forma de lidar com ele.

Se o instrumento primordial da análise é a palavra, podemos entender a transferência como o teatro no qual o texto da subjetividade do paciente será representado e a palavra posta em cena. Sua importância recai na reelaboração interna dos desejos infantis geradores do conflito, e conseqüentemente, do sofrimento.

“Os conflitos originais que tinham levado ao aparecimento da neurose começam a se restabelecer em relação ao analista. Este fenômeno inesperado está longe de ser a desvantagem que à primeira vista poderia parecer. De fato, isto nos dá grande oportunidade. Ao invés de ter de lidar, o melhor que podemos, com conflitos do passado remoto, que estão relacionados com circunstâncias mortas e personalidades mumificadas, e cujas conseqüências já estão determinadas, nos encontramos envolvidos numa situação real e imediata na qual nós e o paciente somos os personagens principais e cujo desenvolvimento está, até certo ponto, sob nosso controle”. (Strachey, 1934)

Na transferência há o deslocamento de sentimentos do paciente, derivados de outras relações de objetos anteriores, para a o analista. Através desta transposição cria-se uma neurose artificial, a neurose de transferência, por meio da qual a neurose originária poderá ser tratada e ao final a catexia empregada para manter custosamente o equilíbrio psíquico ficará a disposição do sujeito a fim de ser empregada em novos e mais prazerosos investimentos.

Na realidade a transferência se torna o campo de batalha no qual as forças que agem no conflito, e na criação do sintoma, são impelidas a se enfrentarem novamente dentro de uma outra realidade e com a possibilidade de um novo desenlace, já que agora conta com mecanismos mais elaborados que não estavam disponíveis no momento em que o sintoma se fixou. Embora a infância seja reexperimentada, agora ela o é de uma forma diversa, pois o fenômeno transferencial relaciona-se ao presente e as lembranças infantis devem ser trazidas e interpretadas em função dessa nova-velha realidade que está sendo vivida. O papel da transferência é o da revivescência da infância em melhores condições. O que antes foi rejeitado patologicamente deve ser admitido agora na consciência, graças a maior força do ego adulto e à conduta do analista (Racker, 1988). Naquela época o ego era frágil, infantil e as exigências da libido lhe pareciam mais perigosas. Atualmente, o ego tornou-se forte e experiente, e, sobretudo tem à mão um aliando na figura do analista, portanto pode-se esperar que o conflito tenha um resultado melhor do que aquele que levou ao recalque. (Freud, 1917).

É importante enfatizar, apesar de não poder me deter no tema, sobre a importância da contratransferência no processo analítico. O analista é um instrumento na sessão e com o gradativo reconhecimento do papel da contratransferência, ele passou a ser convidado a utilizar os afetos despertados em si pelo paciente como mais um veículo para chegar ao inconsciente do analisando, mantendo a neutralidade técnica ao não misturar seus sentimentos aos do paciente. Nesse sentido entendo a comparação do analista a um espelho como uma forma de esclarecer que ele deve refletir seu paciente e não mostrar a si próprio na análise.

O paciente se mostra na análise não apenas naquilo que diz com palavras, mas também no seu silêncio e em toda sua maneira de se comunicar com o analista. A comunicação analítica também se faz de forma indireta através dos sintomas do paciente, de como ele expressa sua resistência, seja nos atrasos, nas faltas, nos esquecimentos, nas atuações, nas diversas formas como ele experimenta e intercala as variadas manifestações da transferência, enfim num vasto espectro de manifestações únicas a cada sujeito. É na dinâmica desta comunicação direta e indireta que se apreende o modo de funcionamento do analisando, o modo como seu aparelho mental busca uma via de descarga, os mecanismos pelos quais ele se defende, como ele se organiza e reorganiza a cada momento.

Esses fenômenos clínicos que apresentei brevemente são maneiras do sujeito mostrar seu funcionamento mental e devem ser reconhecidos pelo analista como instrumentos de acesso ao mundo interno do analisando. O analista acompanhará os variados caminhos pelos quais seu paciente o conduz e desenvolverá conjuntamente com ele uma compreensão interna de sua dinâmica própria e do significado daquilo que está sendo comunicado.

Através do estabelecimento desse diálogo tão particular na vida do analisando, lhe será possibilitado reconhecer seu papel na construção de sua história. Ele deixará de ser mero espectador das vontades inconscientes para se tornar ator principal de suas escolhas, à medida que compreende melhor suas motivações. Acredito que o resultado de uma análise seja antes de tudo a liberdade. Liberdade maior diante da força outrora totalmente desconhecida do inconsciente e sua sobredeterminação, e também liberdade proporcionada pela aceitação das limitações de cada um.

Numa sociedade que exige soluções rápidas, prazer imediato, relações descartáveis, busca incessante pela vida ideal, a Psicanálise encontra-se, felizmente, na contramão da história, com seu convite a olhar profundamente para dentro de si, de suportar o peso das desilusões, os limites da castração, de entrar num outro sentido de tempo, numa outra esfera de comunicação. A Psicanálise representa o contraponto a um mundo angustiante de ilusões efêmeras e ideais inatingíveis, ela representa o diálogo do que é possível entre o ideal e o real. Ela dá a possibilidade da pessoa ser o que se é.

Referências Bibliográficas

BURGOYNE, B. – Interpretação. In: BURGOYNE, B.; SULLIVAN, M. Diálogos Klein Lacan. São Paulo: Via Lettera Editora e Livraria Ltda., 2001.

JOSEPH, B. – Equilíbrio psíquico e mudança psíquica. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1992.

FREUD, S. (1910) – Cinco lições de psicanálise. In: ESB. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976. v. X.

_________ (1914) – Recordar, repetir e elaborar. In: ESB. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976. v. XII.

_________ (1914) – História do movimento psicanalítico. In: ESB. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976. v. XIV.

_________ (1917) – Transferência. In: ESB. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976. v. XVI.

_________ (1917) – Terapia Analítica. In: ESB. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1976. v. XVI.

RACKER, H. – Estudos sobre técnica psicanalítica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1988.

STRACHEY, J. – A natureza da ação terapêutica da psicanálise. International Journal of Psychoanalysis, 1934, v. XV.

ROCHA, Z. - Freud: aproximações. Recife: Editora Universitária, 1993.

Ana Cláudia Zuanella

Psicanalista

Membro Titular e Didata da Sociedade Psicanalítica do Recife

Mestranda em Psicanálise pela Universidade Católica de Pernambuco

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data de publicação: 07/03/2014