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O Vínculo Ameaça-Dor

O Vínculo Ameaça-Dor

29/11/2013

O Vínculo Ameaça-Dor

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“O homem conhece o universo no útero de sua mãe e o esquece ao nascer” Wilfred R. Bion, 1977.

Convencido da origem sexual da mente, Freud, a princípio, via o trauma como conseqüência de abusos sexuais sofridos, mas outro tipo de trauma acabou se evidenciando com os estudos sobre o narcisismo: o trauma da ferida narcísica sofrido pelo ego. Quer dizer, a princípio, a pulsão sexual é imune a traumas por ser autoerótica, o que não ocorre com as pulsões de autopreservação. Estas são vulneráveis à frustração e ao desprazer traumático para o ego ainda imaturo, que com a repetição de falhas em sua relação de dependência com o objeto cuidador poderá ter o seu desenvolvimento prejudicado, ou seja, ferido narcisicamente.

O afeto é o ponto final da descarga da excitação endossomática (Trieb) e o ponto inicial do processo psíquico gerado pela percepção sensorial da descarga somática, sendo assim biológico e psicológico ao mesmo tempo. A representação ou idéia seria o registro mnêmico da descarga afetiva percebida (prazer ou desprazer) e dará origem à fantasia e ao pensamento. Esta seria a matriz afetiva, desenvolvida a partir da descarga somática, que inclui percepções de vivências afetivas dos das etapas iniciais da vida e sobre a qual se desenvolverão as estruturas ideativas posteriormente. Assim, a psicanálise tem o seu ponto de encontro e síntese com a neurobiologia, de onde provem a teoria geral do psiquismo humano de Sigmund Freud.

Aqui considera-se o psiquismo como sendo exclusivamente corporal, com a mente regida por sensações de prazer e desprazer, num mecanismo de bio-regulação presente em todos os seres vivos. É a etapa caracterizada por um ego corporal (o papel do ego psíquico é desempenhado pelo objeto cuidador na preservação da vida). Ao tempo em que o organismo se desenvolve, as quotas de afeto se proliferam em traços mnêmicos/representações criando circuitos associativos e desenvolvendo as estruturas ideativas. Aos poucos as estruturas ideativas irão prevalecendo sobre as afetivas criando o ego psíquico e com ele, mais adiante, o Processo Secundário, que adiará e/ou atenuará a necessidade de descarga da energia pulsional.

Como a pulsão inclui necessariamente o objeto (Freud, 1915) e sendo a quota de afeto um componente da pulsão, a percepção da descarga somática/afeto é indissociável da percepção do objeto, daí o ego corporal estar também indissociado do objeto, o que faz o sujeito perceber o objeto como seu próprio corpo, do qual vai diferenciar-se à medida que as estruturas ideativas se desenvolverem. Por outro lado, como as estruturas afetivas nunca se extinguem haverá sempre um objeto interno representado com o sujeito. Na visão de Ferrari (2004) este será o primeiro e único objeto (Objeto Originário Concreto, o próprio corpo).

A ligação estreita entre mãe e filho (attachment), descrita inicialmente por Bowlby, é construída a partir de incontáveis respostas pulsionais que visam ligar a mãe à criança e a criança à mãe. São comportamentos adaptativos da espécie, que tem por objetivo a defesa contra predadores (holding, mãe suficientemente boa, rêverie...).

No bebê humano, a dependência do objeto se faz sentir de modo mais prolongado, portanto a importância dos cuidados maternos se intensifica. Como sabemos, ansiedade primária do nascimento é sucedida em todos os mamíferos pela ansiedade de separação. Esta, por sua vez, na espécie humana se desdobra na ansiedade pela perda do amor do objeto. Tal dependência passa a fazer parte da estrutura psíquica, reforçando a importância do superego como resultante da internalização do objeto como forma de tornar-se independente (Freud, 1923).

Um distúrbio inicial no processo de regulação pelo attachment deixará marcas somáticas correspondentes à falhas na estruturação do ego. Se diante de uma situação de ansiedade intensa o ego não estiver suficientemente estruturado, os mecanismos primitivos voltarão a atuar trazendo os mesmos estados de desamparo da infância mais remota.

Em outras palavras, temos um potencial genético humano, mas precisamos também de um potencial genético inter-humano, ou seja, uma relação eu/não eu, para formarmos o nosso próprio Eu. Se esta relação não for razoavelmente adequada, teremos problemas importantes no futuro.

Vinculum, do latim significa tudo o que serve para atar, ligar, prender, amarrar, juntar, unir, encadear, acorrentar. Vínculo: 1) aquilo que ata, liga ou aperta (duas ou mais coisas); 2) o que estabelece um relacionamento lógico ou de dependência; 3) o que liga duas ou mais pessoas; 4) o que impõe uma restrição ou condição; 5) equilíbrio obrigatório entre grandezas. (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 2001).

Em psicanálise, vínculos seriam estruturas emocionais unindo pessoas ou estruturas de uma mesma pessoa que se relacionam (corpo e mente, objetos, sentimentos, idéias), evidentemente uma função de Eros, de ligação.

Bion nomeou três vínculos fundamentais: Amor (L), Ódio (H) e Conhecimento (K). Os dois primeiros vínculos, L e H, já bastante conhecidos na concepção do conflito Amor x Ódio, antes mesmo das pesquisas de Bion, foram por ele também melhor conceituados e estudados. L se apóia basicamente nos ensinamentos de Freud e H, sobretudo nas idéias de Klein. O vínculo K (Conhecimento, derivado do desejo da mãe em conhecer o seu bebê) teve um destaque especial em sua obra, empreendendo pesquisas sobre o pensamento, um aparelho para pensar os pensamentos e o conhecimento, sendo que, para este autor, o conhecimento seria parte apenas do pensar, exemplifica com a incógnita, que não pode ser conhecida, mas que poderá ser pensada, estimulando a criatividade. Assim, o conhecimento se desenvolveria em função do pensamento. Este último, o pensamento, necessita estar sempre associado à emoção, o que se dá através da função vinculadora de K, dando sentido às experiências emocionais.

Fazendo uso dos ensinamentos deixados por Freud (conhecimento associado à pulsão escopofílica a partir das relações entre os pais e ao enigma da origem dos bebês) e Klein (conhecimento associado à pulsão sádica, à curiosidade e controle sobre o interior do corpo da mãe), Bion compreendeu a associação do conhecimento ao pensamento decorrente da função de continência, registro e notação das demandas corporais, da reação à experiência emocional primitiva de frustração pela ausência do objeto.

Ele ampliou as situações de conflito entre os vínculos e descreveu o conflito entre emoções e anti-emoções dentro de um único e mesmo vínculo. Assim, L, H e K podem ser sinalizados positiva ou negativamente, de maneira que –L não seria o mesmo que H, por exemplo, mas sim uma oposição à emoção do amor, da mesma forma como –H não equivaleria a amor, mas sim a uma oposição à emoção do ódio. Zimerman (2004) acrescenta a estes três, um quarto vínculo, o Vínculo do Reconhecimento.

Costumo pensar, com Freud, que o maior desafio que enfrentamos durante as nossas vidas é o de suportarmos a nós mesmos, visto que esta presença nos acompanhará por toda a existência. Fato é que suportarmos a nós mesmos parece ser uma sentença extremamente condensada, uma vez que envolve diversos e diferentes significados e está em função das vicissitudes que acompanham o nosso viver e a realidade com que nos relacionamos interna e/ou externamente (relação vertical ou horizontal, segundo a terminologia utilizada por Ferrari). A história nos ensina que a realidade pode estar além do que podemos suportar, naturalmente de acordo com as potencialidades do nosso ser biológico e do nosso desenvolvimento mental a ele, desde sempre, conectado. Assim desenvolvemos recursos defensivos para lidar com situações que nos ajudam a suportar a realidade e a nós mesmos dentro desta realidade. Como é sabido, a maneira como nos relacionamos com nós mesmos diante da realidade que nos é apresentada se mostra de importância fundamental para um desenvolvimento mais ou menos saudável.

Já no Projeto, Freud se refere ao conceito de tolerância à frustração relacionada ao desenvolvimento do pensamento – “o estado de expectativa é o ponto de partida para o pensamento”. Em Formulações sobre os Dois Princípios do Funcionamento Mental (1911), descreve os Princípios do Prazer e da Realidade como os mecanismos básicos e fundamentais que a mente se utiliza para lidar com situações de frustração e dor impostas pela existência. Diz Freud: “O pensar foi dotado de características que tornaram possível ao aparelho mental tolerar a tensão provocada pelo aumento de estímulos, enquanto o processo de descarga é adiado”. A atividade do pensar surge, então, com a intenção de adiar a descarga e modificar a realidade. A alternativa seria a fuga ao desprazer ocasionado pela privação (originalmente a ausência do objeto cuidador ou sua incapacidade em conter e elaborar as primitivas angústias do bebê), levando à formação de equívocos e auto-enganos (estruturas falsas, -K), uma vez que o vínculo K está ligado ao mundo das verdades (especialmente as diferenças entre os sexos e entre gerações, tempo, envelhecimento e morte).

Bion propõe uma equivalência entre a intolerância à frustração e a intolerância às emoções dolorosas e, como fuga, além do recalque, sugere mecanismos psíquicos de ataque aos vínculos, ao próprio pensamento ou às funções egóicas que visam o contato consciente com a realidade dolorosa, o que assume extrema importância psicopatológica, já que o grau de patologia mental está diretamente relacionado aos tipos e intensidades de defesas que o ego se utiliza para negar o sofrimento mental.

O modelo de relacionamento afetivo que nos acompanhará por toda a vida está firmado nos cuidados maternos e na sua interação com o universo afetivo do bebê. Satisfazendo as necessidades naturais e culturais de seu bebê, a mãe é a fonte de todas as experiências de prazer do filho. Estamos no território da paixão narcísica, onde não há possibilidade de diferenciação entre self e objeto. Também o cuidado e a sedução erótica são inseparáveis aqui.

Freud, em Esboço de Psicanálise (1938) nos diz: “Nessas duas relações está a raiz da importância de uma mãe única, sem paralelo, inalteradamente estabelecida por uma vida inteira como o primeiro e mais forte objeto de amor e como o protótipo de todas as outras relações de amor posteriores – para ambos os sexos”. Modelo que persistirá e que tenderá a se repetir invariavelmente, em sua totalidade (fenômeno transferencial), salvo em situações em que o modelo poderá ser questionado, contestado. Caso a mente possa suportar a sensação de iminente catástrofe (desestruturação de um modelo preestabelecido) e toda a angústia que tal situação de mudança genuína provoca, poderá alcançar a liberdade depressiva, reestruturante, de estabelecer novos modelos de funcionamento afetivo para o aparelho mental.

Como um ego auxiliar, a Função Materna é a base de continência e espelho para o bebê. Aceitando e contendo a qualidade e a intensidade de suas próprias pulsões, a mãe desperta o filho para a vida pulsional, para a própria vida. A mãe torna possível, ao bebê, reconhecer nela as suas próprias pulsões, funcionando como um continente seguro, capaz de “digerir” suas angústias e devolvê-las de forma mais aceitável e suportável, dando sentido e nomeando cada expressão de afeto surgida na relação. Quer dizer, após possibilitar o nascimento da vida pulsional do bebê, o único objetivo do amor materno é torná-la suportável e possível.

Contando com as potencialidades de seu próprio sistema e com a ajuda da mãe (intersecção dos eixos vertical e horizontal, na hipótese de Ferrari), o bebê, a princípio, só precisa se defender de sua própria excitação pulsional interna. Em certos casos, além de lutar contra essa excitação pulsional interna, o bebê também terá que lutar contra a excitação pulsional externa, que vem do objeto – interno e externo se confundem e se somam. Desta forma instala-se o caos em lugar da ordem. Em contrapartida, o bebê, em fantasia, passa a atacar destrutivamente o objeto e a realidade do ambiente, buscando neutralizá-los.

O mundo interpessoal é um mundo afetivo (Stern, 1985), com o seu desenvolvimento encorajado pela interação afetiva entre o cuidador e o bebê. Estudos recentes (Fonagy e Target, 1997) atestam a presença de um comportamento reflexivo, aprendido no início da vida, a partir das trocas afetivas entre mãe e bebê, que opera durante toda a vida, inconsciente e automaticamente. A mãe cria representações para as expressões afetivas do bebê e, funcionando como espelho, ajuda a fundar as representações do bebê sobre si mesmo, que assim vai mapeando a constituição de seu self.

Wilma Bucci (1997) nos diz que “No mesmo sentido que observações repetidas de um objeto formam classes e imagens prototípicas funcionalmente equivalentes, episódios repetidos com um núcleo afetivo comum, envolvendo outras pessoas na relação do self, também formam classes funcionalmente equivalentes das quais as imagens prototípicas dos episódios são geradas”.

Incorporados como traços de memória, tornam-se modelos operantes do que é provável que aconteça quando alguém tem um desejo ou uma necessidade e, nessas circunstâncias, proporcionam expectativas do que é provável que as outras pessoas façam e como a pessoa provavelmente se sentirá. Os esquemas emocionais na memória não são fixos, diz Bucci, reformam-se continuamente no comportamento adaptativo, na dependência de novas experiências interpessoais. Porém existem situações em que o esquema prototípico do self é extremamente resistente a qualquer mudança no modelo primordial, o que é traduzido por Bion, como uma excessiva quota de Pulsão de Morte atuante, se expressando por ataques invejosos e vorazes que não permitem integração. Ou uma falha da revêrie materna e de sua função alfa, sobrecarregando o bebê num estado de “terror sem nome”. Ou ainda, pelas duas situações concomitantes numa espécie de conluio maligno.

O reconhecimento, por parte dos filhos, em relação aos vínculos afetivos e sexuais dos pais faz com que possam internalizar uma experiência que, no futuro, servirá como modelo para os seus relacionamentos afetivos. Para a obtenção do prazer, necessitamos da ação complementar de um parceiro que, na infância, são os pais e na vida adulta, o cônjuge. Embora a relação amorosa homem/mulher tenha as suas origens nas primitivas interações afetivas mãe/bebê, ela restabelece essa vinculação dual, de conotação sexual, em um novo contexto, marcado pela individualidade, pela alteridade e pela diferença de sexos (Costa, 2001).

A Função Paterna inclui a continência para as ansiedades da mãe, além da satisfação das pulsões sexuais que não deverão ser descarregadas sobre o bebê. O pai é o mediador da loucura passional entre mãe e filho, presente em ambos ao mesmo tempo.

Preocupa-nos, em nossa sociedade pós-moderna, um enfraquecimento da figura paterna, que acarreta dificuldades na constituição da identidade dos filhos e uma relação falsa com a realidade.

Observamos que, em muitos casos, as funções paternas têm sido preteridas em favor de relacionamentos em que pais e filhos não funcionam como tais, delimitados por seus papéis, mas como uma espécie de amigos (ou inimigos), estabelecendo a orfandade dos filhos. Tal privação paterna está na base da orientação anti-edípica da nossa sociedade atual, trazendo, ainda, como conseqüência natural, um estímulo e fortalecimento do narcisismo baseado na primitiva relação simbiótica mãe/bebê. As implicações deste modelo narcísico e anti-edípico estão evidenciadas, sobretudo, na falência dos processos de educação, no apagamento das diferenças entre os sexos e entre gerações. Sentimentos de vazio e irrealidade, ausência de valores, consumismo compulsivo como tentativa de preenchimento de buracos na alma e o bombardeio de informações desconexas e despedaçadas. A chamada Cultura do Narcisismo com o culto à auto-imagem, auto-erótica, torna o novo descartável e promove o apagamento dos laços históricos, barreira intransponível contra o desenvolvimento e a evolução. A satisfação precisa ser imediata, do contrário a angústia parece insuportável – o espaço do pensamento não pode ser criado. Como o narcisismo não admite diferenças, o indivíduo vive na ilusão da completude pré-genital, distanciando-se da verdade, da realidade interna e externa.

Assim, filhos e afetos de nossa época, sobrevivem num estado de vazio flutuante, suspenso, na impossibilidade de um vínculo de respeito e consideração que possa abrir caminhos para o desenvolvimento emocional e psíquico, criando o espaço necessário para o pensar e o amadurecimento criativo.

A perspectiva edípica importa a responsabilidade sobre desejos inconscientes e sobre as verdades psíquicas, entretanto, a capacidade do ser humano para tolerar verdades, muitas vezes fontes de dor a se evitar, é precária.

“A tomada de consciência, pela criança, de sua existência em separado, cujos anseios não coincidem mais na relação de onipotência mútua, só será possível se a mãe suficientemente boa fez funcionar seu amor objetal (investimento pela criança da mãe como garantia de bem-estar, quando as pulsões são ativadas em busca de satisfação) e terá como função tornar as pulsões toleráveis (já que a frustração é inevitável), o que dará à criança a sensação de ser amada (narcisismo positivo e crença no amor objetal). Toda a satisfação antecipada, toda a satisfação dada sem amor ou diferida para além das possibilidades de espera do bebê, toda a difusão das angústias da mãe transformam esta ação boa em má” (Green, 1988).

Para uma estrutura narcísica vulnerável, tudo o que for diferente também será ameaçador e deverá ser atacado e destruído por aumentar o nível de excitação do aparelho psíquico, desequilibrando um estado prévio de onipotência.

Em nossos dias, como nos traz Ahumada (1999) citando Boudrillard (1988), “os signos, surgidos para indicar realidades, passaram com a publicidade e a propaganda, a ser usados para ocultar realidades e, na atualidade, no contexto virtual do rádio, da televisão, dos videogames e da internet, começam a ocultar a ausência de realidade da cultura”, convertendo o insight em ameaça temida (-K), a crise do pensar. A mente reencontra o seu poder primitivo onipotente sem que haja frustração - tudo pode ocorrer e nada ocorre ao mesmo tempo. Sem frustração (indispensável ao desenvolvimento do pensar), sem perdas, sem luto elaborativo, o processo simbólico estará danificado.

A busca da gratificação imediata, submetida à ação/compulsão, liderada pelo princípio do prazer, com a exclusão da realidade, substituída por uma realidade virtual, portanto inexistente, mágica e onipotente, dissemina-se culturalmente, resultando numa opacificação das identidades individuais em troca do estado maníaco de euforia do não-pensar.

Diferentemente do que ocorria há algumas décadas, portanto não há muito tempo, em que prevaleciam as neuroses e, mais ainda, dos tempos de Freud, em que prevalecia a histeria, o que está na ordem do dia hoje são as personalidades nas quais não há um sujeito capaz de criar representações psíquicas e que vive suas instabilidades no corpo e na ação/compulsão, com descargas imediatas, sem espaço para o desenvolvimento do pensar criativo, levando a grandes dificuldades em conter as sensações que vêm do corpo assim como o incremento de excitação proveniente da realidade externa.

Herrmann (1997) introduz, para estes casos, as noções de ato puro e de psicose de ação, correlatos de uma crise da representação no mundo contemporâneo, em que a representação virtual toma o lugar da realidade, com conseqüências importantes para a vida psíquica. A realidade perde sua substância e parece irreal ao indivíduo e a psique pode entrar em colapso. Incapacitado de elaborar a nível psíquico esta nova condição, a única certeza passa a ser a ação – quando já se duvida de tudo, não há como duvidar do ato concreto, diz ele. Pensamento e ato estão fundidos e confundidos (desequilíbrio entre verticalidade e horizontalidade). O conceito de ato puro, como coloca o autor, é bastante diferente do conceito já conhecido de actin-out, que seria o retorno ou a emergência do reprimido, portanto com um sentido simbólico, passível de interpretação. O ato puro seria a incapacidade de simbolização, não simboliza o reprimido, mas está em seu lugar. “A concentração em um ato isolado, de todo o possível saber, pensamento ou crítica, de toda a emoção e sentimento, de toda a ação organizada, cabe chamar de ato puro” (Herrmann, 1997). O ato puro tem como objetivo a sustentação narcísica do eu esvaziado de substância, desvinculado, contraparte da realidade virtual. Fora do ato o sujeito corre o risco de despersonalização e desrealização, diante de uma angústia branca (Chabert, 1987) face ao vazio, com impossibilidade de integrar, elaborar e organizar os dados apreendidos através da observação, resultando em reações impulsivas, compulsivas e imediatas, com dificuldade em discriminar o que é interno do que é externo e de aprender com a experiência.

São pessoas que, antes do conflito pulsão versus defesa, típico das neuroses, sofrem de vazios, uma ausência quase absoluta de emoções (buracos negros, no dizer de Tustin). Apresentam uma rígida carapaça ou concha autística que se forma contra a ameaça de um sofrimento provindo de frustrações impostas pela realidade, como uma primitiva separação traumática do corpo da mãe, em uma etapa em que ainda não se processara a diferenciação self/não-self, tendo como conseqüência prejuízos nas etapas de separação e individuação. São vazios resultantes de precocíssimas faltas e falhas da figura materna em sua função de maternagem, como são as funções de continente para as angústias do bebê, de provisão das necessidades biológicas, físicas e afetivas, falhas na função de espelho (respostas depreciativas ou depressivas – mãe morta, Green, 1988), desinvestimento libidinal da mãe pelo bebê resultando em um vazio de mãe, ideal de ego dos pais rigidamente exagerado, com ameaças sádicas e agressivas. Há uma hipertrofia do uso de identificações projetivas podendo chegar a uma supressão de todo o conteúdo mental, com a formação de vazios, atraindo tudo que a ele se refere, comprometendo seriamente a formação de símbolos. Pacientes adultos regredidos a esta etapa constroem muralhas defensivas contra a angústia de desamparo e desmoronamento psíquico. Crianças reagem inicialmente com protesto (choros, manhas, sintomas somáticos), posteriormente com um estado de apatia depressiva e a seguir entram num estado de des-esperança que as levam a construir barreiras protetoras contra o mundo hostil. Na tentativa de fugir destas angústias de vazio é comum o uso de mecanismos psicóticos e perversos (sexualidade aditiva, somatizações, transtornos narcísicos com congelamento dos afetos e controle tirânico sobre os outros, com hipertrofia da onipotência, onisciência, arrogância, fuga das verdades, da realidade externa e interna, comportamentos maníacos de controle, triunfo e desprezo sobre os demais, criação de um super-superego). Falhando estes mecanismos, estes pacientes, diante do vazio, podem reagir com intensa violência e agressividade e o risco de suicídio precisa ser considerado.

A compulsão à repetição desloca-se de sua fixação ao prazer para o reencontro com o efeito de um trauma sem representação, ou seja, para uma busca ativa do sofrimento. Assim, o movimento da pulsão, desprendida de representação em ato, requer reformulações da técnica que permitam ir além do desejo e seus representantes. Diante da profunda ferida narcísica, estes pacientes investem repetidamente tentativas para manter viva a criança que resiste a transformar-se numa lembrança agonizante (Marucco, 1978). São marcas ingovernáveis pela incapacidade de vincular-se ao Processo Secundário (não houve tempo nem psiquismo estruturado para que o traumático pudesse ser inserido na representação). De qualquer forma, não podemos nos esquecer que re-petição significa etimologicamente pedido de ajuda. Estamos longe do Inconsciente reprimido e muito próximos do caldeirão do Id, quando falamos então do “soterrado”, diferentemente do inconsciente reprimido, já observado por Freud em 1937. Conceito próximo ao de embrião pulsional, o soterrado poderá emergir através da passagem direta ao ato, ou ao soma, ou ainda alcançando o desejo e manifestando-se como sintoma.

São pacientes que nos propõem um grande desafio, com os quais precisamos nos abrir para o negativo buscando captar as dores que o paciente já não pode sofrer, o que nos coloca, ainda em contato com a nossa própria capacidade de tolerância à dor mental, de maneira que não obstrua a nossa capacidade de intuir o que não pode ser dito. O predomínio do ódio à verdade e ao conhecimento estimulam ataques à função de continência e rêverie do analista e poderão comprometer a função de suportar, conter e nomear a dor mental, no longo percurso analítico.

“...a psique destes pacientes contém um objeto interno que se opõe e é destrutivo para com todo e qualquer elo de ligação... a emoção é odiada, sentindo-se que a emoção liga objetos e empresta existência a objetos que são não-eu, sendo conseqüentemente avessa ao narcisismo...” (Bion) , a posição defensiva mais vital (e mortal) para estes pacientes. Desta forma, um objeto bom que se oferece é percebido como intensificando as emoções contra as quais o paciente iniciou seus ataques, a ajuda oferecida é percebida como agressão ou humilhação, o que a meu ver representa o maior obstáculo à cura e a maior prova a que o analista deve superar.

A repetição pura (ato puro ou psicose de ação), descarregada em atos ou no soma, vai lentamente silenciando toda a possibilidade do que poderia ganhar representação. São pacientes que, carentes de análise, a morte pode chegar antes do tempo, condenados ao silêncio ou ao transbordamento delirante.

A tarefa analítica implicaria não na investigação e elaboração da fantasia, mas em sua construção, quer dizer, em lugar da reconstrução histórica da verdade material, haveria a construção do novo, a criação. Não há história, não há palavras, não há representantes, não há simbolização portanto, mas apenas o encontro analítico.

Diferentemente das neuroses, quando a atenção flutuante do analista detecta nas associações livres do paciente os representantes do inconsciente reprimido, nas Patologias do Vínculo, potencialmente sensoriais e traumáticas, o analista precisa fazer uso de sua contratransferência e ir além, sonhando o sonho que o paciente não pode sonhar e colocando sua mente em função de desenvolver uma mente ainda insipiente, buscando atender a urgência daqueles que nos procuram com um pedido que pode ser o último e que, ao mesmo tempo, empreenderão grandes e compulsivos esforços no sentido de fazer com que este novo vínculo (ameaça-dor como todos os outros) seja reeditado no fracasso do trauma sem representação.

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RESUMO: A partir das moções pulsionais, o autor desenvolve um pensamento sobre a construção de um mundo afetivo, mediado pela relação mãe/bebê e intermediado pela presença do pai em um segundo momento, origem das estruturas ideativas, dentro de um desenvolvimento razoável. A importância dos vínculos iniciais é destacada, lembrando os propostos por Bion, que poderão ser representados positiva ou negativamente. Tece comentários sobre as proposições de Freud (o soterrado), resgatada por Marucco e de ato puro, de Herrman. Sugere o termo vínculo ameaça-dor para pacientes que identificam a ajuda como humilhação.

PALAVRAS- CHAVE: pulsão, vínculo afetivo, patologias narcísicas, o soterrado.

ABSTRACT: Fromtheinstinctual impulses, theauthordevelops a thoughtaboutbuildinganaffective world, mediatedbythemother / baby relationshipandbrokeredbythepresenceofthefather in a secondstage, theoriginofideationalstructures, within a reasonabledevelopment. The importanceoftheinitial links ishighlighted, remindingthoseproposedby Bion, whichmayberepresentedpositivelyornegatively. Commentsonthepropositionsof Freud (theburied), andrescuedbyMaruccoandthepureactofHerrman. Suggeststhetermbondthreatens for thepatientsthatidentify help likehumiliation.

KEYWORDS: drive, bonding, narcissisticpathology, theburied.

Adalberto Goulart

Membro Efetivo e Analista Didata IPA - NPA/SPRPE

adalbertogoulart@uol.com.br

data de publicação: 2911/2013