Considerações sobre o Encanto e o Des-Encanto

14/11/2013

Considerações sobre o Encanto e o Des-Encanto

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\"Não existe desespero tão absoluto quanto aquele que surge nos primeiros momentos de nosso primeiro grande sofrimento, quando não conhecemos ainda o que é ter sofrido e ser curado, ter se desesperado e recuperado a esperança\". George Eliot (Mary Ann Evans, séc. XIX)

Recebo uma paciente que chamarei de X., como as incógnitas da matemática. Ela tem idade aproximada de 20 anos e procura-me encaminhada por um psiquiatra. Sinto um tom de voz algo infantil, inseguro ao telefone. Marcamos uma entrevista à qual ela comparece sozinha e pontualmente. Alta, um rosto particularmente bonito, um corpo extremamente emagrecido. Entra, senta-se, mantém o tom de voz pueril que havia percebido ao telefone, sorri timidamente, parecendo não saber ao certo o que fazia ali, além do fato de ter sido encaminhada pelo psiquiatra. Então fala-me de estados depressivos que acentuaram-se após ter perdido um namorado, considerado por ela como um verdadeiro “príncipe encantado holandês”, com quem acreditava iria casar-se e finalmente ser feliz.

Refere-se à sua mãe como super-protetora e a seu pai como reservado e indiferente às relações familiares e afetivas, um empresário de sucesso, voltado inteiramente aos negócios.

Relembra que, na infância, “era uma menina maldosa, que aprontava com as outras crianças, batia, colocava pimenta na comida delas e chicletes nos cabelos”. Nunca bem-vinda, era sempre repudiada pelas mães de tais colegas. Ainda assim achava divertido fazer tais maldades, mas sentia ciúmes da irmã mais velha, bondosa, simpática e querida pelas outras crianças, situação que permanece assim até hoje.

Na adolescência, conforme me conta, iniciou um quadro depressivo, com transtorno alimentar do tipo anorético, com sentimentos de profunda tristeza, irritação, sentindo-se muito feia, obesa, com grande distorção de sua imagem corporal. Terrivelmente ciumenta e possessiva, tanto com pessoas quanto com objetos. Relembra suas dificuldades escolares de aprendizado, embora tenha conseguido concluir curso superior com certa dificuldade. Refere dificuldades em organizar o pensamento e a fala. Se diz bastante sugestionável, especialmente em relação a doenças, passando a ter sintomas semelhantes quando ouve algum relato de pessoa doente. Nos momentos em que se sente mais triste tem compulsão para comprar coisas, na maioria das vezes desnecessárias, chegando a gastar grandes somas em dinheiro com coisas que, absolutamente, não necessita. Algumas vezes acha que deveria morrer, embora sua expressão me parece dissociada, não condizente com o que diz.

Proponho uma experiência analítica com quatro sessões semanais, a qual ela reage em princípio pelo número de sessões, para logo a seguir concordar.

Conta-me que sente muito prazer em apanhar nas relações sexuais que mantém com parceiros que mal conhece, às vezes com dois ao mesmo tempo, seduzida por relatos de poder econômico. Sente medo de contrair AIDS, mas ao mesmo tempo não toma nenhuma medida preventiva. Geralmente pede a tais parceiros que batam em seu rosto e conta-me com uma expressão de naturalidade, esboçando um pequeno e provocante sorriso. Relaciona-se muitas vezes com homens que conhece via internet, em geral estrangeiros, marcando encontros em outras cidades, passando com eles alguns dias.

Sente-se auto-suficiente, não necessitando de nada ou de ninguém, embora tenha vindo à minha procura, encaminhada por uma psiquiatra que a medica com antidepressivos. Comporta-se como uma menina, fala como uma menina e parece tentar me surpreender com relatos de suas aventuras sexuais ou de que se sente obesa e necessita perder 15 quilos. Se come alguma coisa como um chocolate, obriga-se a não comer nada no dia seguinte e a passar horas na academia de ginástica. Outras vezes provoca vômitos.

Não se deita, senta-se no divã e me olha de frente. Conta-me sobre suas aventuras no início das sessões e terminado o relato, refere não ter mais nada a dizer. Em uma sessão me diz, em meio a sorrisos, sobre um estrangeiro que conheceu através da internet e que viria vê-la em seu próprio avião. Uma história tão pouco provável que cheguei a me questionar se não seria uma atividade deliróide da paciente. Combinou de passar alguns dias com tal pessoa em outra cidade do Brasil, e fala dos detalhes da programação da viagem, de sua ansiedade pelo encontro num feriado, fantasiando que poderia se casar com este novo “príncipe encantado” estrangeiro. De tal encontro, além do sorriso dissociado de sempre, chama-me a atenção novamente o relato de pedir para apanhar durante as relações sexuais e o fato de que o seu parceiro mantinha relações sexuais falando ao celular sobre negócios, o que ela não apenas achava natural, mas admirava, o que me pareceu uma clara alusão à desarmonia de sua constelação edípica (lembremos que X fala sobre o pai como alguém indiferente afetivamente e voltado inteiramente aos negócios).

Em outro relacionamento acreditou que iria casar-se também com um estrangeiro e quando ele rompeu o namoro tentou cortar os pulsos, sendo socorrida pela família.

Algumas vezes, quando questionada em relação a tais comportamentos ou risos de sua própria dor, parece deprimir-se, chora, silencia. Pouco depois volta a sorrir contando-me outra aventura sexual ou “traquinagem” (como caluniar uma colega de trabalho para que seja demitida). Ela própria não se reconhece como capaz de realizar nada, acreditando manter-se no trabalho por tratar-se de uma empresa do pai. Passa todo o tempo em que está na empresa em conversas pela internet.

Apesar da fragilidade evidente e de submeter-se a humilhações sexuais, comporta-se de maneira arrogante e autoritária, tentando controlar as situações e repudiando qualquer possibilidade que evidencie dependência. Está constantemente em busca de reconhecimento e de admiração, embora negue, e é invadida por sentimentos de menos valia se suas expectativas não se realizam, o que quase sempre acontece.

Durante meses a ouvi, tentando manter um continente empático para tamanha fragilidade, com algumas pontuações e confrontações sutis na tentativa de que X pudesse aos poucos resgatar sua relação consigo mesma, sua verticalidade. Algumas vezes parecia deprimir-se quando percebia alguma lágrima a escorrer pelo seu rosto, para logo a seguir retomar a postura anterior, voltada para fora, controladora, arrogante, a planejar “traquinagens” contra alguém (em geral a quem inveja) ou contra si mesma em busca de descarga sob a forma de dor/prazer.

Havia observado que ao abrir a porta e convidá-la para entrar na sala de análise seu rosto se iluminava, abrindo um sorriso pueril como sempre. Certa vez arrisquei-me a assinalar tal movimento para ela, que reagiu com muita irritação.

Mais alguns meses e X me fala do quanto sente-se só nos finais de semana, sem amigos, sem companhia, isolada em seu quarto e de sua ansiedade para que logo iniciasse a semana, deixando para trás sábado e domingo. Comentei que talvez se sentisse um tanto desamparada com as pausas da análise nos finais de semana e de como parecia aguardar pela sessão de segunda-feira. Da irritação que eu já conhecia vi surgir em seu olhar um ódio imenso, profundamente indignada com meu comentário. Retornou para fazer o pagamento do mês e interrompeu o processo psicanalítico. Nunca mais tive notícias de X.

Os transtornos alimentares (anorexia nervosa e bulimia) causam perplexidade e viram manchetes de jornais rapidamente, consumidos por ávidos leitores que buscam compreender o que lhes parece incompreensível. Diante destes quadros, de imediato percebemos que parece ter ocorrido uma catástrofe em seu sistema somatopsíquico. De maneira contundente são pacientes que desistem de investir em relacionamentos afetivos e do próprio desenvolvimento, quando a possibilidade de vincular-se a outras pessoas parece ter se perdido muito precocemente. Mostram-se superficiais e raramente demonstram emoção. Muitos referem a percepção de um deserto branco na alma, representando um mundo interior esvaziado.

Procuram destruir dentro de si qualquer possibilidade de vínculo afetivo, buscando sustentar a fantasia de terem aniquilado toda e qualquer necessidade. Parecem odiar o próprio self vivo e, portanto dependente, protagonizado pelos vômitos que representam o repúdio ao que, pouco antes, foi devorado tão gulosa e cruelmente (Lawrence, 2003) - o registro da dependência, em outras palavras, quando a mente parece odiar as necessidades vitais do corpo.

São estados que denotam defesas maníacas não simbolizadas, e procuram declarar a falta da necessidade e a auto-suficiência da mente em relação ao corpo. Um recurso extremo e perigoso para a defesa da vida, protagonizado por alguém que traz no corpo profundas e dolorosas marcas (compreendidas hoje, com o auxílio dos recentes estudos psicanalíticos e neurocientíficos, como fazendo parte do arquivo de memória procedural) de um passado extremamente precoce em que a ameaça à vida se fez presente de maneira alarmante. Não se trata, portanto, de algo reprimido, mas sim de algo sem representação, sem registro psíquico, mas com registro corporal. Configura-se como um grande desafio à psicanálise, quando o analista é solicitado não para mediar conflitos entre instâncias psíquicas, mas para tomar parte na construção de algo que nunca foi vivido, na construção de um aparelho mental que possa estar em constante comunicação com as emoções que emergem do corpo físico, dando-lhes contenção e significado, objetivando manter o sistema num estado razoavelmente equilibrado de harmonia e homeostase.

Sabemos com Ferrari que, à medida que o aparelho mental é criado a partir do corpo físico, sob a pressão das sensações marasmáticas que dele emanam, em busca de dar-lhes contenção, registro, simbolização e por fim desenvolvendo a capacidade para pensar, contando com os registros mnêmicos dessas percepções, irá lançando sombra sobre o Objeto Originário Concreto (OOC, o próprio corpo), que será, pouco a pouco, eclipsado. Eclipse porque poderá ressurgir a qualquer momento, reclamando que seja ouvido e que a mente dele se ocupe. Tem-se daí que o eclipse do OOC é de importância fundamental para que o desenvolvimento emocional e cognitivo se dê, mantendo a verticalidade do contato íntimo consigo mesmo e a horizontalidade dos relacionamentos com o outro e com a cultura possam estar também em harmonia.

Desta forma, há uma matriz afetiva, criada a partir da descarga somática sobre a qual se desenvolverão as estruturas ideativas no ser humano, de onde provém a teoria geral do psiquismo humano de Sigmund Freud.

A estrutura afetiva seria formada pelos registros mnêmicos de percepções de vivências afetivas dos primórdios da vida, quando as sensações de prazer e desprazer ocupavam todo o psiquismo. Nesta etapa podemos considerar o psiquismo como sendo exclusivamente corporal, com a mente regida por sensações de prazer e desprazer, num mecanismo de bio-regulação presente em todos os seres vivos. É a etapa caracterizada por um ego corporal (o papel do ego psíquico era desempenhado pela mãe ou cuidador na preservação da vida). Ao tempo em que o organismo se desenvolve, as quotas de afeto se proliferam em traços mnêmicos/representações criando circuitos associativos e desenvolvendo as estruturas ideativas. Aos poucos as estruturas ideativas vão prevalecendo sobre as afetivas criando o ego psíquico e com ele o Processo Secundário, capaz de conter grande parte da descarga da energia pulsional e orientar um destino compatível com a realidade. O pensamento surgirá como uma descarga atenuada e provisória.

Para Freud (1915) a pulsão inclui necessariamente o objeto e sendo a quota de afeto um componente da pulsão, a percepção da descarga somática/afeto é indissociável da percepção do objeto, daí o ego corporal estar também indissociado do objeto, o que faz o sujeito perceber o objeto como seu próprio corpo, do qual vai diferenciar-se à medida que as estruturas ideativas se desenvolverem. Por outro lado, como as estruturas afetivas nunca se extinguem haverá sempre um objeto interno representado com o sujeito.

Para Ferrari, o primeiro, único, original e originário objeto da mente é o corpo, o que parece retificar, aprofundar e ampliar o proposto por Freud, quando o ego corporal estaria indissociado do objeto (sendo este o próprio corpo), diferenciando-se em um ego psíquico à medida que o aparelho anímico se desenvolve, eclipsando o Objeto Originário Concreto (OOC). A concomitância de Processos Primário e Secundário, na visão de Freud, sempre presentes e atuantes, estaria de acordo com a hipótese de Ferrari, de que haveria um eclipse e não um desaparecimento do objeto.

A mãe ou cuidador se oferece como facilitador ou catalizador, realizando a rêverie necessária e auxiliando seu bebê a conter e nomear suas angústias sensoriais sem nome, a caminho da verticalidade.

A ligação estreita entre mãe e filho (attachment) é construída a partir de inúmeras respostas pulsionais que visam ligar a mãe à criança e a criança à mãe. No bebê humano, a dependência do cuidador se faz sentir de modo mais prolongado, portanto a importância dos cuidados maternos se intensifica. A ansiedade primária do nascimento parece ser sucedida em todos os mamíferos pela ansiedade de separação, esta, por sua vez, na espécie humana se desdobra em outra fase, a ansiedade pela perda do amor da mãe ou cuidador. Tal dependência passa a fazer parte da estrutura psíquica, reforçando a importância do superego como resultante da internalização da responsabilidade por si mesmo, como forma de se tornar mais independente (Freud, 1923).

Um distúrbio inicial no processo de regulação pelo attachment ocasiona uma predisposição patológica, deixando marcas somáticas correspondentes à falhas na estruturação do ego. Se diante de uma situação de ansiedade intensa o ego não estiver suficientemente forte, os mecanismos primitivos voltarão a atuar trazendo os mesmos estados de desamparo da infância mais remota, com a emergência das sensações marasmáticas em lugar de sentimentos, tirando o OOC de seu eclipse e prejudicando a função simbólica e o pensar.

Com a psicanálise compreendemos que todo sintoma, toda a manifestação de doença é, em si, uma tentativa de buscar um rearranjo, uma reorganização de todo o sistema, a partir de algo que o desestabilizou. Naturalmente as tendências para um ou outro tipo de reorganização estará na dependência das potencialidades e fragilidades de cada ser, de acordo com o seu desenvolvimento filogenético e ontogenético. Sabemos que nem sempre tais tentativas obtém êxito, elas poderão inclusive intensificar o sofrimento e a dor ou, até mesmo, antecipar a morte que está por vir, desperdiçando o possível da vida.

A partir dos estudos de Freud e especialmente do aprofundamento de tais estudos dados por Klein e outros, compreendemos que o binômio depressão/mania não corresponde a pólos diferentes e antagônicos, mas que assim se mostram apenas aparentemente. Depressão e mania são verso e reverso de uma mesma e única condição, sendo que os estados maníacos corresponderiam a uma negação da dor, do sofrimento e da impotência que os estados depressivos trazem consigo. Uma tentativa ilusória de reaver a vida que parece esvair-se com a perda significativa, transformando impotência em pré-potência ou onipotência, luto elaborativo em arrogância e triunfo. Nos estados maníacos a capacidade para formação de símbolos e para o pensar será também desarticulada, na tentativa de negar a realidade interna e externa, e instaurando o estado de onisciência em seu lugar.

Sabemos que a mente humana possui o recurso de fazer fracassar as funções mentais sempre que não tolerar a quantidade de carga afetiva dolorosa e não contar com ajuda empática, ocasionando ainda rupturas, colapso da memória e desarticulação da unidade somatopsíquica, originando estados desarmônicos e a emergência das sensações marasmáticas em lugar de experienciar sentimentos e emoções. Estamos diante do fracasso da rêverie materna em favorecer o desenvolvimento da verticalidade e a humanização do bebê, tendo como conseqüência a criação de uma condição semelhante a uma espécie de deserto emocional.

De acordo com os estudos do prof. Ferrari e seus colaboradores, admitindo que o objeto primeiro da mente seria o mesmo corpo que a gerou, sendo portanto a dimensão psíquica uma função do corpo biológico, compreendemos que a perda da pessoa amada seria uma situação bastante complexa, que afetaria diretamente a configuração egóica e a constelação edípica, colocando o sujeito em contato direto com sua vulnerabilidade e finitude, ocasionando importante desarmonia no sistema. O relacionamento com um outro significativo seguirá sempre o modelo do relacionamento inicial com a mãe (catalisadora dos recursos do bebê), sendo este outro, também, um catalisador de certos recursos do próprio sujeito. Com a perda, o sujeito será forçado a introduzir em sua configuração egóica os aspectos concernentes a este determinado relacionamento interrompido, responsabilizando-se por tais aspectos. Algo que, evidentemente, é condizente com a fase ontogenética da constelação edípica, voltando sua curiosidade individual para si mesmo, para a sua verticalidade, ao contrário da possessividade e ciúmes característicos da fase filogenética.

Assim, considerando esta hipótese de trabalho, não se poderia falar em perda, já que não haveria posse do objeto, mas sim em interrupção do relacionamento com o outro amado. O sujeito deverá passar a se responsabilizar pelos aspectos anteriormente cuidados pelo outro, tornando-se também responsável pelas suas escolhas e pela sua vida. A consciência dos limites, do tempo e da morte poderá ser, portanto, uma possibilidade grande de revisão de todo o sistema individual.

Porém, se à constelação edípica faltar elasticidade e mobilidade, dentro de seu domínio psíquico, constituindo-se rigidamente, a perda do outro significativo poderá provocar reações ainda mais desarmônicas, e todo o sistema tenderá a remanescer a uma condição marasmática.

Sendo assim, utilizando o conceito de configuração egóica, poderemos identificar o estado melancólico como sendo um momento de grande desarmonia experimentado dentro do próprio sistema. Compreende-se, então, como havendo um elevado aumento da condição entrópica, resultado de uma sobrecarga do conflito entre corpo) e mente. Na condição melancólica, as idealizações e expectativas da mente seriam fortemente frustradas e haveria grande resistência em remodelar e reestruturar seu mito pessoal. Vivendo a experiência da finitude e do limite, confrontado com seu mito pessoal e idealizações, o ódio à realidade levará o sistema a regredir à condição marasmática, com conseqüente desertificação da configuração egóica, sem possibilidade de fazer uso da própria experiência.

A capacidade do indivíduo em se adaptar a essa nova realidade produzida será diretamente proporcional à possibilidade de re-harmonizar seu sistema corpo-mente. Um diálogo pessoal interno deverá ser ativado e a proposta psicanalítica seria a de ajudar o paciente a aprender a viver sua vida responsabilizando-se por todos os aspectos referentes a ela. O trabalho analítico precisará ser cuidadoso, no sentido de evitar conluios que poderão distanciar o analisando dos pensamentos de perda e assim reforçar operações maníacas de cisão e negação, colocando-o como mero expectador de si mesmo. Ou nem isso.

Não temos como afirmar o que possa ter ocorrido de tão impactante com a minha jovem paciente X, mas podemos conjecturar, a partir de seus poucos relatos e particularmente da maneira como se mostrava e se comportava, que ela trazia em seu sistema um vazio profundamente doloroso, sem nome e sem correspondente psíquico, que poderia ser traduzido com a seguinte citação de John Steiner (1990):

“Em tempos de crise, a bondade é tratada como debilidade que não nos podemos permitir, já que a sobrevivência exige apoiar-se em deuses poderosos, cuja santidade não deve ser questionada”. Este seria o caminho pelo qual seguiu a história da “... menina maldosa, que aprontava com as outras crianças, batia, colocava pimenta na comida delas e chicletes nos cabelos” em sua busca pela sobrevivência.

Diferente dos neuróticos, com selfs constituídos, mas em conflito; dos borderlines, com selfs frágeis e ilhas de funcionamento psicótico; dos somatizadores, que localizam seu self no corpo; dos psicóticos, com seus delírios e alucinações criados por um sujeito psíquico que os constrói; encontramos personalidades com uma espécie de proto-self, um self sem forma, diluído, esparramado, extrojetado (Yázigi, Minerbo e Attux, 2000) que não chegam a criar delírios e alucinações, já que estes requerem uma atividade psíquica representacional, mas que vivem suas instabilidades no corpo e na ação, como parece ser o caso de X.

Parece também adequada a denominação utilizada por Herrmann (1997) para estes casos: Ato Puro. Este teria como objetivo a sustentação narcísica do ego esvaziado de substância, em estados que exibem uma franca desarmonia no sistema, com profundo comprometimento da verticalidade, em função de transtornos no desenvolvimento da constelação edípica e da configuração egóica. Fora do ato o sujeito corre o risco de despersonalização e desrealização, diante de uma angústia branca face ao vazio (buracos negros, no dizer de Tustin), com impossibilidade de integrar, elaborar e organizar os dados apreendidos através da percepção e da observação de si mesmo e do mundo ao seu redor (sua verticalidade e horizontalidade), com grande dificuldade em discriminar o que é dentro e o que é fora de si mesmo, resultando em descargas impulsivas e imediatas.

São situações em que parece ter havido uma primitiva separação traumática do corpo da mãe, em uma etapa em que ainda não se processara a diferenciação self/não-self, tendo como conseqüência prejuízos nas etapas de separação e individuação. Ou seja, são vazios resultantes de precocíssimas faltas e falhas da figura materna em sua função de maternagem, como são as funções de continente para as angústias do bebê; de provisão das necessidades biológicas, físicas e afetivas; falhas na função de espelho (respostas depreciativas ou depressivas – mãe morta); desinvestimento libidinal da mãe pelo bebê resultando em um vazio de mãe; ideal de ego dos pais rigidamente exagerado, com ameaças sádicas e agressivas. Na tentativa de fugir destas angústias de vazio é comum o uso de mecanismos psicóticos e perversos (sexualidade aditiva, somatizações, transtornos narcísicos com congelamento dos afetos e controle tirânico sobre os outros, com hipertrofia da onipotência, onisciência, arrogância, fuga das verdades, da realidade externa e interna, comportamentos maníacos de controle, triunfo e desprezo pelos demais). Falhando estes mecanismos, estes pacientes, diante do vazio, podem reagir com intensa violência e agressividade e o risco de suicídio precisa ser considerado.

Marucco (2007) nos diz que a compulsão à repetição, como um mecanismo de funcionamento do Processo Primário, desloca-se de sua fixação ao prazer para o reencontro com o efeito de um trauma sem representação, ou seja, para uma busca ativa do sofrimento. Sem representação porque se refere a algo anterior à aquisição da linguagem. São marcas ingovernáveis pela incapacidade de vincular-se ao Processo Secundário, uma desarmonia da relação corpo/mente (não houve tempo nem psiquismo estruturado para que o traumático pudesse ser inserido na representação). De qualquer forma, não podemos nos esquecer que re-petição significa etimologicamente pedido de ajuda.

Estamos longe do Inconsciente reprimido quando falamos do “soterrado”, já observado por Freud em 1937. Conceito próximo ao de embrião pulsional, o soterrado estaria associado às manifestações marasmáticas da corporeidade e poderá emergir através da passagem direta ao ato, ou ao soma, ou ainda alcançando o desejo e manifestando-se como sintoma.

São pacientes que nos propõem um grande desafio, com os quais precisamos nos abrir para o negativo buscando captar as dores que o paciente não pode sofrer, o que nos coloca, ainda, em contato com a nossa própria capacidade de tolerância à dor mental, de maneira a que não obstrua a nossa capacidade de intuir o que não pode ser dito. O predomínio do ódio à verdade e ao conhecimento, que poderiam resgatar a responsabilidade por si mesmo, uma revisão profunda de todo o sistema e um redirecionamento do mito pessoal, estimula ataques à função de continência e rêverie do analista e poderão comprometer a função de suportar, conter e nomear a dor mental, no longo percurso analítico.

“...a psique destes pacientes contém um objeto interno que se opõe e é destrutivo para com todo e qualquer elo de ligação... a emoção é odiada, sentindo-se que a emoção liga objetos e empresta existência a objetos que são não-eu, sendo conseqüentemente avessa ao narcisismo...” (Bion) , a posição defensiva mais vital para estes pacientes. Desta forma, uma nova relação com um novo outro significativo que se oferece é percebida como intensificando as emoções contra as quais o paciente iniciou seus ataques, o que a meu ver representa o maior obstáculo à experiência analítica e a maior prova a que o analista deverá superar, ou seja, de que a desarticulação do sistema somatopsíquico, no entender destes pacientes, seria uma tentativa de defesa (talvez a única ou última) para a manutenção da vida (embora possa aproximá-los da morte) e não abrirão mão dela facilmente.

A repetição pura (ato puro ou psicose de ação), descarregada em atos ou no soma, vai lentamente silenciando toda a possibilidade do que poderia ganhar representação.

A tarefa analítica implicaria, não no atravessamento da fantasia ou na elaboração de uma situação conflitiva, mas em sua construção, quer dizer, em lugar da reconstrução histórica da verdade material, haveria a construção do novo, a criação. Não há palavras, não há representantes, não há simbolização, portanto, mas apenas o encontro analítico.

Diferentemente dos neuróticos, quando a atenção flutuante do analista detecta nas associações livres do paciente os representantes do inconsciente reprimido, estes são pacientes potencialmente sensoriais e traumatizados muito precocemente, e aqui o analista precisará fazer uso de sua contratransferência e ir além, sonhando o sonho que o paciente não pode sonhar (rêverie) e colocando a sua mente em função de auxiliá-lo a desenvolver uma mente insipiente ou mesmo criar uma mente ainda inexistente, que servirá de abrigo e continente para as pressões marasmáticas da corporeidade, reorganizando e re-harmonizando o sistema em sua verticalidade e entropia, capacitando o paciente a responsabilizar-se pelo que sente, pensa, faz, pelo que é, na conquista de maior liberdade e autonomia.

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RESUMO: O autor inicia o trabalho com uma pequena história clínica de uma paciente anorética que interrompeu o processo de análise nos primeiros meses. Tece considerações teóricas sobre defesas maníacas não simbolizadas, vivenciadas no corpo e na ação, resultando em uma desertificação da configuração egóica, com ataques a qualquer possibilidade de vínculo e dependência e articulando tal processo a existência de traumas extremamente precoces, anteriores a diferenciação self-objetal.

UNITERMOS: transtornos alimentares, trauma precoce, psicanálise.

ABSTRACT: The author starts the paper with a short history of an anorectic patient who interrupted the process of analysis in the first months. Weaves theoretical considerations on non-symbolized manic defenses that are experienced in body and action, resulting in desertification of the ego configuration, with attacks on any possible links and dependency.He articulates this process with the possible existence of very earlytrauma, before self-object-differentiation.

KEY WORDS: eating disorders, early trauma, psychoanalysis.

Adalberto Goulart

Membro Efetivo e Analista Didata IPA - NPA/SPRPE

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data de publicação: 14/11/2013