A sexualidade na relação materno-infantil
14/03/2014
Ana Claudia Zuanella - Psicanalista - Membro Titular e Didata da Sociedade Psicanalítica do Recife - Mestranda em Psicanálise pela Universidade Católica de Pernambuco - E-mail: [email protected]
A sexualidade na relação materno-infantil[1]
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Falar sobre sexualidade do ponto de vista psicanalítico requer, antes de mais nada, que se estabeleça sua distinção com o sexo no seu sentido mais comum. Em Psicanálise a sexualidade tem uma conotação mais abrangente, ela não se reduz ao ato sexual. Ela vai além, ela se relaciona com os investimentos afetivos de uma forma geral, especialmente com a pulsão, a força motriz do aparelho mental que está constantemente em busca de satisfação. A pulsão sexual ou libido tem sua satisfação por meio da descarga, não envolvendo necessariamente uma descarga no ato sexual.
A sexualidade é uma expressão pulsional por natureza cuja função é o prazer. O sexo, por sua vez, pode ser compreendido como uma função biológica e genital cujo objetivo é a reprodução. Da mesma forma que, para a teoria psicanalítica, o psiquismo não é redutível ao consciente, a sexualidade não o é ao genital.
Neste trabalho pretendo trazer a contribuição da Psicanálise, com sua ótica particular sobre a sexualidade, para abordar a relação da mãe com o bebê. Mais especificamente, pretendo discutir o início da constituição do ser humano sob o viés do investimento libidinal.
Assim como há um desenvolvimento físico que acompanha o bebê desde o seu nascimento, também há um desenvolvimento mental progressivo e contínuo que acontece desde os primeiros dias de vida. Ambos ocorrem concomitantemente, se entrecruzam e estão correlacionados. A construção da identidade do ser humano depende não só de sua aparência física, mas principalmente da imagem mental que paulatinamente vai criando através da estruturação do seu psiquismo.
O bebê humano tem uma diferença fundamental para os das demais espécies, pois nasce em total estado de desamparo, tanto físico quanto psíquico. Esta condição especial acarreta numa importante conseqüência para seu desenvolvimento, posto que o nenê depende inteiramente de uma outra pessoa para satisfazer suas necessidades. Aquele que cuida da criança - a mãe ou uma substituta – tem extrema importância não só para sua sobrevivência física, mas também psíquica. A relação do bebê com sua mãe será muito importante na forma como o sujeito construirá a imagem de si e estruturará seu aparelho mental. Por sua vez, esta estruturação psíquica determinará a maneira do indivíduo lidar com suas demandas internas e com a sensação perene de desamparo e angústia que acompanha o ser humano ao longo da vida.
No início o bebê sequer tem noção de sua fragilidade. Graças ao cuidado maternal[2], ele mantém temporariamente a ilusão da onipotência infantil e acredita que a mãe é um prolongamento dele. Esta ilusão de bastar a si mesmo serve para atenuar o impacto que traria a percepção brutal de sua real fragilidade e assim evitar uma insuportável angústia de desintegração até que ele esteja mais fortemente organizado internamente para elaborar sua fragilidade. Neste início que chamamos de auto-erótico o bebê ainda não tem uma percepção de si próprio com uma unidade, seu ego ainda está se constituindo. Ele é um corpo fragmentado e como tal o investe em partes disjuntas e desconexas. É muito comum vermos bebês “descobrindo” partes de si próprio gradualmente, olhando pés e mãos como se nunca os tivesse visto ou como se fosse algo à parte do seu corpo. Lentamente vai investigando-os com os olhos, com a boca e assim desenvolvendo gradualmente a unificação destas partes num todo.
A essa unidade gradativamente formada chamamos de ego. Ele vai sendo desenvolvido através de várias experiências tanto internas como externas, pois ambas estarão constantemente entrelaçadas. O mundo interno dá sentido às percepções do mundo externo. Uma experiência muito importante para integração do bebê é o que Winnicott chama de “holding” que tem o sentido mesmo de segurar, pôr no colo, aninhar, dar a noção física, através do contato com a mãe, dos limites do corpo do nenê, além de significar também um amparo psicológico, uma sustentação de segurança, um alívio frente à sensação de desamparo. (mães canguru)
A mãe, à proporção que toca seu filho, que lhe dá banho, que conversa com ele, que o olha, o compreende, o nomeia, está investindo libidinalmente o nenê e com isso vai dando substratos para ele se perceber mais integrado, para ele começar a se ver e reconhecer como separado dela e, portanto como um ser único.
Nessa fase, mesmo começando a se perceber como uma unidade, o bebê ainda mantém a falsa idéia de bastar a si mesmo. Esse estágio inicial que Freud denominou narcísico é fundamental para tornar possível o acúmulo de experiências de satisfação suficientes para começar a construir as bases do amor próprio. Essas reservas narcísicas embasarão a auto-estima do sujeito e permitirão a aceitação da alteridade do outro e a construção de uma imagem diferenciada de si. A sensação inicial de onipotência permite à criança fortalecer seu ego para suportar a percepção da separação da mãe.
Uma mãe suficientemente boa é aquela que, segundo Winnicott (1962), “é capaz de satisfazer as necessidades do nenê no início, e satisfazê-lo tão bem que a criança, na sua saída da matriz mãe-filho, é capaz de ter uma breve experiência de onipotência”.[3]
Uma forma de compreendermos a participação materna no começo da vida do bebê é entendendo-na como uma intermediária na adaptação da criança à realidade externa, se ela compreende bem seu filho, reconhece e atende às necessidades dele, o choque diante da adaptação ao mundo real será atenuado e realizado com mais tranqüilidade.
O desenvolvimento mental da criança prossegue para novos estágios à medida que ela vai percebendo que suas necessidades não são totalmente satisfeitas, portanto não dependem somente de sua vontade. Dependem de outra pessoa. O bebê então vai se dando conta da presença do outro. Este outro que na realidade é o responsável pela sua satisfação. Este é um momento de intensa frustração diante da perda de sua onipotência e também de grande raiva frente à necessidade do objeto. É fundamental para o bebê contar com uma mãe capaz de sustentar seus anseios e inseguranças para que ele não se sinta ainda mais vulnerável e não imagine que suas demandas internas sejam incontroláveis e destrutivas, nem que sua angústia seja insuportável e o aniquile. Para que a mãe possa dar esse suporte é preciso que ela mesma, por sua vez, tenha tido a chance de construir um ego forte através de suas próprias experiências infantis. E, que apesar dela ter tido as suas experiências traumáticas diante do desamparo, da angústia de separação, ela tenha sido capaz de lidar com eles de forma suficientemente adequada e saudável.
De fato, a relação da mãe com seu bebê está muito marcada por sua própria revivescência infantil. Na realidade a mãe está muito identificada com seu filho e utiliza esta identificação para poder compreendê-lo melhor e entender suas necessidades. Ela desenvolve uma “preocupação materna primária”. A vivência de separação que a criança experimenta nesse momento e viveu intensamente no nascimento, já foi experimentada pela mãe enquanto bebê e repetida na sua angústia de separação revivida no parto. Para a mãe, abrir mão de seu filho para o mundo é um momento muito difícil e ameaçador. Assim como seu filho, a mãe demanda por cuidados diante de sua fragilidade reeditada nas situações de parto e puerpério. Em casos mais drásticos há a eclosão da depressão pós-parto que requer cuidado integral urgente para tratar não só da saúde da mãe e seu bebê, mas também para viabilizar o bom estabelecimento da relação entre ambos.
É através dos cuidados maternos que a criança experimenta as primeiras sensações de satisfação, que ela se vê diante de um mundo de necessidades realizadas e passa a partir de então a entrar na esfera do desejo e do prazer. No momento em que o bebê tem a fome saciada, o calor ou frio atenuados fica um registro mental de tais sensações de bem-estar. Posteriormente o nenê tentará resgatar essa experiência prazerosa por meio da rememoração através da fantasia. Esse tipo de satisfação é da ordem mental, já que nenhuma necessidade orgânica está sendo efetivamente atendida. No entanto, a experiência psíquica do prazer está apoiada numa experiência fisiológica anterior. Freud se utiliza dessa noção de apoio para explicar a diferenciação gradual da pulsão em relação ao instinto. Nesse momento não se trata mais de uma questão de necessidade física, é da esfera mental e do desejo que estamos falando. E também da fantasia, esse recurso imprescindível para o ser humano. A fantasia não só permite outra forma de descarga da pulsão, como também coloca em movimento o mundo interno do sujeito, intermediando as representações, simbolizações, o desenvolvimento do pensamento, a aquisição da linguagem, possibilitando o aprimoramento da capacidade criativa e o exercício da diversidade de cada um.
Entretanto um mundo exclusivamente de fantasia tampouco se sustenta na criança e é importante que não o faça. O aparelho mental, e o ser humano por conseqüência, vai se desenvolvendo a cada etapa frustrada que requer um avanço adiante na procura por outra forma de lidar com o desconforto, com a frustração, com a busca pela satisfação do desejo.
Um mundo encerrado principalmente na fantasia é um mundo regido unicamente pelo prazer, onde não há espaço para a realidade. Um dos movimentos responsáveis pelo amadurecimento da organização mental do ser humano é a passagem do princípio do prazer para o princípio de realidade. É preciso que o bebê abra mão da ilusória descarga imediata da pulsão para se adequar à realidade dos investimentos e dos objetos mais adequados para tanto. Se isso não for bem elaborado na criança, há o risco do desenvolvimento de patologias mais graves como a psicose por exemplo. Ou mesmo em situações mais brandas nós poderemos ver mais tarde um adulto ou adolescente que não tolera frustração, que não admite sua limitação e busca incessantemente ter sua vontade atendida sem respeitar a importância do outro ou reconhecer que precisa se esforçar para obtenção do seu prazer. São pessoas que acham que o mundo deve servi-los, que o prazer tem que ser imediato. Por isso é tão necessária a imposição de limites na educação das crianças, para elas aprenderem a tolerar as frustrações decorrentes. Nesse sentido é importante que uma mãe seja também suficientemente frustradora.
O bebê precisa reconhecer a presença do objeto, sem que isso se transforme num trauma excruciante. Ele não pode se sentir massacrado pela dependência angustiante do outro, nem ameaçado em seu aniquilamento diante da magnitude da pressão pulsional ou da falta de objeto que sirva para a descarga. O objeto deve ser um aliado do sujeito na busca do prazer e não fonte de angústia.
A relação com a mãe se torna tão importante neste aspecto, pois ela é o primeiro objeto de amor de ambos os sexos e, portanto pode ser considerado o protótipo das relações objetais subseqüentes. É preciso deixar claro que não está se falando que a mãe num sentido exclusivamente concreto e real defina todas as relações futuras do ser humano, mas sim que a maneira como a criança apreende e introjeta essa relação inicial é muito significativa para relações subseqüentes, inclusive consigo própria. A palavra relação compreende justamente essa idéia de troca entre duas pessoas, cada qual com seu mundo interno particular, com sua percepção individual. Um bebê mais voraz tenderá a se sentir mais frustrado que outro cuja intensidade pulsional seja menos incontrolável, uma mãe deprimida mais provavelmente será pouco gratificante, mesmo para um bebê facilmente saciável, uma mãe simbiótica dificilmente permitirá que o bebê efetue o processo de separação de maneira saudável, e assim por diante. Cada dupla se formará da interação entre as particularidades de ambas as partes.
Esta interação entre a dupla mãe/bebê é tão primordial que alguns importantes teóricos na psicanálise de detiveram especialmente nela. Uma destas teóricas foi Melanie Klein que definiu dois momentos iniciais no desenvolvimento mental do bebê intermediados pela relação com a mãe. Ambos são deflagrados no esforço do nenê em se defender de ansiedades primitivas de destruição. O primeiro ela chama de posição esquizo-paranóide e o segundo, posição depressiva. Na posição esquizo-paranóide o bebê não vê o objeto como um todo, é aquela fase em que a criança ainda não tem uma noção de unidade. Segundo Klein, o bebê interage com os objetos como se eles estivessem divididos, cindidos em bons ou maus. A criança tende a projetar seus impulsos destrutivos no mundo externo, dotando-o de objetos maus, que são persecutórios. Em contrapartida há os objetos sentidos como bons, apaziguadores e reconfortantes. O seio é percebido ora como um objeto bom quando alimenta, ora como um objeto mau quando frustra no momento da fome. O bebê não compreende que se trata do mesmo seio, de um objeto único que varia conforme sua carga pulsional projetada sobre ele.
Num segundo momento, na posição depressiva, a compreensão de que existe um objeto inteiro com partes boas e más se dá e a criança vivencia a culpa pelo ódio que sentiu, e ainda sente, em relação ao objeto amado. Esse avanço é imprescindível para emergir a capacidade de reparação. Adultos que não têm essa posição bem internalizada tendem a persistir na cisão dos objetos ou situações, reforçando sua angústia persecutória de que tudo e todos estão contra eles. Eles tampouco conseguem admitir sua culpa nos seus fracassos, sendo-lhes muito difícil o movimento de reparação dos seus erros. O amor pelo objeto percebido na sua totalidade, faz com que se tolere a culpa por odiá-lo em alguns momentos, sabendo-se que se é capaz de reparar possíveis danos causados ao mesmo.
Mesmo enfatizando a relação dual da mãe com o bebê, até porque este é o objetivo desta discussão, vale salientar que o pai tem um papel fundamental nesta relação e na estruturação do psiquismo do sujeito. Ele é importante desde o início, primeiro no apoio dado à mãe para que esta desenvolva uma relação tranqüila com seu bebê e depois será fundamental no deslocamento da relação dual mãe - filho para uma relação triangular mãe – pai – filho. Ele é um outro objeto de investimento da mãe para que ela deixe espaço para a experiência de frustração na criança e esta vivencie a interdição. A triangulação edípica é um marco na história do desenvolvimento libidinal do ser humano, quando um complexo de experiências, sentimentos e conflitos são vividos e elaborados. Como resultado desta fase há o direcionamento da identidade do sujeito e de sua personalidade. No entanto, infelizmente, foge ao nosso tema e ao nosso tempo, uma discussão pertinente sobre este assunto de tamanha riqueza.
Para finalizar, gostaria de enfatizar que não existe uma forma específica de constituição do ser, pois a história de cada um é única e se rearranja de maneira ímpar em cada indivíduo. O psiquismo do homem se forma e se mantém justamente para poder lidar com essa gama de possibilidades que a pulsão nos coloca. Assim como não há uma forma fixa de estruturação, não existe uma rigidez absoluta criada pelas relações iniciais do indivíduo. As histórias individuais podem ser reeditadas, restauradas, reorganizadas de maneira a proporcionar uma vida mais inteira e menos sofrida. É a isso que a Psicanálise se propõe.
Ana Cláudia Zuanella
Psicanalista
Membro Titular e Didata da Sociedade Psicanalítica do Recife
Mestranda em Psicanálise pela Universidade Católica de Pernambuco
data de publicação: 14/03/2014
[1]Trabalho apresentado na mesa-redonda do I Congresso IMIP de Saúde Integral, Recife-PE, novembro de 2007.
[2] Aqui, e todas as vezes que me referir à mãe, estarei falando da função materna a qual pode ser desempenhada também por outra pessoa que cuide da criança.
[3]Winnicott, D.W. – O ambiente e os processos de maturação. Artes Médicas, Porto Alegre, 1983.