Buracos na calçada e os tropeços da vida

21/07/2015

 

Buracos na calçada e os tropeços da vida

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Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã

Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar
E essas coisas que diz toda mulher
Diz que está me esperando pro jantar
E me beija com a boca de café

Todo dia eu só penso em poder parar
Meio dia eu só penso em dizer não
Depois penso na vida pra levar
E me calo com a boca de feijão

(Cotidiano- Chico Buarque)

Andando por uma calçada, de repente, um desnível , um buraco, uma torção, uma fratura.

"Mas como isso pode acontecer? Como não me dei conta ? Sempre passei por aqui, a calçada é a mesma "...

Será?

Passamos grande parte da nossa vida repetindo gestos automáticos. Acordamos, levantamos, tomamos café, subimos ao carro em direção ao trabalho, reclamamos do trânsito, trabalhamos. Ao final do dia subimos de volta ao carro, conduzimos a casa, assistimos a televisão e voltamos a dormir.

Não pensamos. Repetimos.

Até que uma pedra fora de lugar na calçada nos faz tropeçar , nos quebra e nos obriga a pensar nos tropeços da vida. Uma pedra fora de lugar ou qualquer evento que nos faça parar. Pensar sobre a nossa condição humana.

Assim é a vida. Cheia de imprevistos, tropeços, fraturas. Cada dia , cada hora cada minuto "tropeçamos" com novas "informações". E o que fazemos com elas ?

O automatismo vai em um movimento contrario a Vida. Está impregnado de Pulsão Morte. Nos aprisiona , Repetimos para não mudar. Mas mudar significa crescer, sentir e suportar  "as dores do crescimento". Apreender e aprender com as experiências, com os tropeços, nas calçadas e na vida.

Minha mente começa a divagar e lembro das Baleias Jubarte. Assim como outras espécies de baleias, a jubarte realiza uma migração anual . Durante o verão elas se dirigem as águas polares para se alimentar e durante o inverno migram para águas tropicais para acasalar e dar a luz .O maior berço reprodutivo esta no litoral da Bahia, em Abrolhos (Praia do Forte).

Elas chegam por volta de junho/julho e permanecem ate novembro e dezembro, quando retornam as águas geladas da Antártida.

Mas vocês devem estar se perguntando. O que tem a ver baleias jubarte, tropeços na calçada, pulsão vida?

Penso que, assim como as Jubarte, iniciamos diariamente uma viagem rodeada de perigos, alegrias, novos caminhos. Mas sobretudo uma viagem desconhecida. Enfrentamos desafios, rotas desconhecidas, surpresas inesperadas e tropeços na calçada.

Como as Jubartes, podemos encalhar durante a viagem e com ajuda voltar ao mar e seguir viagem, desbravando novos caminhos, agora talvez, um pouco mais cuidadosos e atentos. Outros sucumbem, não conseguem ser ajudadas. Encalham e interrompem a viagem.

Todos os dias empreendemos uma nova viagem, desbravando novos mares e caminhos, no constante movimento que caracteriza a Vida.

Minha memória me traz de volta um tempo onde vivíamos cada momento como se fosse único. O amanhã era o hoje e o tempo tinha uma outra dimensão.

"Olha a hora de dormir que amanhã tem escola" escutava minha mãe repetir noite após noite. Mas não me importava, o amanhã era algo que ainda não existia, queria saber se ia parar de chover para continuar brincando fora de casa. Existia o hoje, e vivíamos livres. Com a mente e o corpo unidos de forma harmônica.

Crescemos e esquecemos de viver o hoje, o dia como se fosse único. Algo que era parte de nós acabou esquecido com o passar dos anos. Obrigações, expectativas, futuros, metas levam nossa mente para longe do nosso corpo esquecendo que o único tempo possível de ser vivido é o aqui e agora. O tempo presente. Passado e futuro podem ser excelentes rotas de fuga que nos levam pra longe do único momento possível de ser vivido: o Presente.

Isso me faz lembrar uma passagem do desenho infantil Kung Fu Panda. O mestre Oogway encontra Panda muito preocupado. E diz Você está muito preocupado com o que foi ou o que será. Diz o ditado: o ontem é historia, o amanhã é um mistério , mas o hoje é uma dádiva. É por isso que se chama Presente. E sai deixando Panda envolto em seus pensamentos.

Passamos o tempo dizendo que sabemos muita coisa (alguns se convencem até que sabem tudo): "eu sei que devo mudar ", ou  "eu sei que devo fazer as coisas de forma diferente", mas nos esquecemos de sentir. Existe uma grande diferença entre saber e sentir, entre sentir a dor e sofrer a dor. O saber intelectualiza, retira o afeto, dissocia.

O sentir nos permite entrar em contato com nossas emoções, nossos sentimentos, escutar nosso corpo e nossa intuição. Não é um trabalho fácil, mas é o único caminho para uma verdadeira mudança. É olhar no espelho e ver-se sem maquiagem . É olhar a si mesmo e reconhecer-se frágil, com limites. É reconhecer a finitude. É sentir-se humano.

E precisamos de ajuda nesse processo. Penso que essa ajuda e esse caminho deve ser percorrido com um par. Um par analítico, que nos ajude a percorrer nossos infernos, purgatórios e paraísos num passeio as vezes assustador, mas libertador.

Só arrumamos verdadeiramente uma casa, ou qualquer outra coisa, se desarrumarmos antes. E não é fácil suportar a desarrumação. Mas é a única forma possível para dar-se conta de quanto espaço ocupamos com objetos e sentimentos com prazo de validade vencido.

Ana Rita Menezes da Silva de Pineyro

Psiquiatra,

Postulante a formação psicanalítica pela

Sociedade Psicanalítica do Recife.

[email protected]

data de publicação: 21/07/2015