Reflexões na quarentena
22/04/2020
Caminhando pelo escritório, paro em frente à estante. Os meus olhos passeiam entre fotos, objetos, algumas anotações e param, subitamente, em um livro.
As Intermitências da Morte, escrito por José Saramago, no qual inicia com a frase: “No dia seguinte ninguém morreu”. Era o dia 1º de janeiro e a passagem do ano não tinha deixado atrás de si o habitual cortejo de óbitos, como se a Morte tivesse resolvido guardar a tão temida foice. Porém a Imortalidade, desejo secreto de todos que ali viviam, começou a causar sérios problemas.
Comovida, diante de tantos problemas, a Morte anuncia o seu retorno. A partir da meia noite daquele dia “se voltará a morrer”, mas sob novas regras. Um envelope violeta, traria o comunicado da Morte. Assim, todos, por igual, teriam o prazo de uma semana para pôr em dia o que lhe resta da Vida.
A mente viaja e me ponho a pensar sobre o momento que vivemos. Casos distantes de uma nova e desconhecida doença se espalharam pelo mundo “sem imunidade” e sem nenhum conhecimento sobre esse novo “vírus”.
E chegou ao nosso mundo.
Famílias estão separadas, amigos já não se reúnem mais para o happy hour. Beijos, abraços e comemorações passaram a ser virtuais. Estamos isolados, e temos tempo para pensar, para pôr em dia, o que temos de Vida.
Nos vimos frente a frente com a finitude, com o quanto somos frágeis e vulneráveis. A ilusão da Imortalidade nos causou sérios problemas e a Morte nos mandou o envelope violeta.
Temerosa, abro o envelope violeta. A Morte me manda um limão.
Um limão? Que estranho, o que significa isso? O que eu vou fazer com um limão, me pergunto.
Uma limonada, talvez seja o mais óbvio, mas posso tentar uma torta, ou um mousse.
Alguém me lembra que eu não sei cozinhar. É verdade, mas agora também me dou conta que não sei muita coisa, ninguém tem imunidade ao vírus, é algo novo, desconhecido lembram?
“É difícil, dá uma angústia danada não saber o que vai acontecer”, me diz uma outra pessoa.
Será que algum dia a gente soube? Me pergunto...
Entra uma borboleta no escritório. A cidade está cheia de borboletas, me pergunto se elas aumentaram ou sempre estiveram ali, esperando serem vistas.
Ela voa e pousa sobre um porta retrato. Observo e penso que, um dia, ela também precisou se isolar e, sozinha, após intensas transformações, pôde voar.
Lembro do limão e agora entendo a mensagem.
Temos infinitas possibilidades diante do estranho que a gente não conhece, da Vida que temos, do limão no envelope violeta.
A Morte enviou o envelope violeta. Ou terá sido a Vida?
Não importa, não vou deixar o limão apodrecer.
Autora: Ana Rita Menezes da Silva de Pineyro
Psiquiatra, Psicoterapeuta - NPA, Membro-fundador do IPFR
Coordenação: Danilo Goulart