Que o confinamento nos seja útil
22/03/2020
QUE O CONFINAMENTO NOS SEJA ÚTIL
Não sou infectologista, não sou sanitarista, nem tampouco intensivista. Sou médico psiquiatra e psicanalista, mas sobretudo humanista. Em tempos serenos ou sombrios, aliás, os primeiros tem permanecido na memória e no desejo, incompatíveis que são com a realidade única do tempo presente. Nesses nossos tempos de pandemia de coronavírus e covid-19, de quarentena e isolamento, a atividade nas redes sociais se intensifica a ponto de mal darmos conta de acompanhar a avalanche de mensagens, imagens, vídeos... informação, solidariedade, mas, sobretudo o medo e a angústia diante do aniquilamento possível.
Algumas postagens são verdadeiramente chocantes, como um vídeo que recebi mostrando crianças em uma UTI italiana agonizando como peixinhos fora d’água. Deletei, impactado, mas ficou gravado em minhas retinas que ainda respiram. Outras não menos chocantes mostram a dor dos profissionais de saúde que precisam escolher de qual paciente cuidar, uma vez que não existem recursos para todos. Embora absolutamente absurdo e incompreensível, não chega a ser uma novidade para a realidade dos hospitais públicos do nosso país, onde médicos intensivistas convivem há tempos com essa situação desumana. Recordo que há anos, por diversas vezes, acolhi as lágrimas de um colega que dizia precisar escolher qual criança sobreviveria em um leito de terapia intensiva. Há muito mais tempo, quando eu iniciava minha carreira profissional em um hospital psiquiátrico, não pude suportar minha indignação e me demiti, após assistir a quatro ou cinco pacientes morrerem engasgados sem nenhum recurso simples que poderia ter lhes salvado a vida. São micro experiências se comparadas a pandemia atual, claro, e muito pouco aprendizado.
Ora, não constitui novidade para ninguém que vírus existem, são seres mutantes com grande facilidade e habitam nosso planeta muito antes de qualquer outra forma de vida e, um dia, sobreviverão a todas as outras. Os invasores somos nós. Então, como outros já disseram e foram pouco ouvidos, não será uma guerra nuclear, uma catástrofe atômica ou uma invasão de ETs que poderá nos destruir. Um vírus mutante poderá varrer a humanidade do planeta terra. Chefes de estado e governantes abastados narcisticamente preocupam-se em investir bilhões na construção de muros, reforçar fronteiras, criar armas poderosas e estratégias de guerra contra irmãos, explorar os mais frágeis e os menos favorecidos e especialmente se manter no poder para continuar a fazer a mesma coisa. Do ponto de vista psicanalítico, é compreensível, conhecemos o funcionamento da mente primitiva, sempre presente e atual, mas lamentavelmente ainda predominante. A psicanálise também nos ensina que não existem fronteiras para a comunidade humana e que não somos outra coisa senão uma entre tantas maneiras da natureza se manifestar, somos a própria natureza, onde tudo que existe parte da mesma origem, somos todos irmãos, humanos ou não. Países ou regiões que convivem com a fome, miséria, doenças, fazer de lixeira nossos oceanos, ameaça a estabilidade vivente de todo planeta, precisamos cuidar de todos os cômodos da nossa casa, sob o risco da cozinha dizimar os ávidos expectadores da Netflix na sala de estar climatizada.
É fundamental que esta experiência de reclusão e sofrimento nos seja útil enquanto lição e aprendizado, que possa contribuir como um salto evolutivo para o pensamento humano, nos traga a humildade necessária à nossa condição. E que a agonia dos meninos peixinhos que não podem respirar, não seja desperdiçada, não seja em vão.
Autor: Adalberto Goulart - Presidente do NPA.
Coordenação: Danilo Goulart