Minha homenagem tardia à Luíz Gama

21/10/2020

 

         Minha homenagem tardia à Luíz Gama

 

      Graças ao isolamento, mudanças necessárias ocorreram que me permitiram explorar novos caminhos, novas mídias, novos autores, inclusive, sobre temas que sempre me perturbaram, mas que só agora me foi inevitável escrever, como “os direitos”, especialmente, o da diferença de cor de pele que traz à tona, principalmente, uma história política e econômica.

     Hoje, vejo-me extremamente decepcionada com a realidade social que presencio no Brasil, especialmente, pois é onde eu vivo. Como podemos, ainda, sustentar a discriminação de cor depois de tanta luta e tanto conhecimento? Me vejo perplexa diante do desnudamento dos preconceitos de nossas classes e povo. Acreditava que já estávamos melhor situados nas relações de trabalho e interpessoais, mas vejo, ainda, tudo isso presente nos discursos políticos, que ressurge como defunto, já que eu pensava que estivera morto e enterrado. Como pode? E aí me ocorreu a oportunidade de ouvir um pouco sobre o Luís Gama.

     Sempre me deparei com minha ignorância na área jurídica e, por isso, perdoem minha aparente tolice para quem esse meu relato não for surpreendente, pois eu queria falar um pouco sobre a história das lutas por justiça humana e sua relação com o direito e, assim, com o poder e quem sabe, reparar um pouco minha ausência nesse debate. Ouvindo um episódio do Podcast “451 MHz”, sobre o autor Luíz Gama, pude perceber e entender que o regime da escravidão, de terror, só pôde existir por haver “juízes do terror”, que configurou, assim, um capítulo de falta da justiça na história da humanidade. Ele nasceu em Salvador em 1830, filho de Luíza Mahin, mulher livre que lutava por insurreição de escravos e, desapareceu provavelmente por esse motivo quando ele estava com sete anos. Aos 10 anos, foi vendido em São Paulo como escravo pelo seu pai “branco” e falido. Fugiu sabendo de seus direitos como homem negro que já estavam disponíveis antes da Lei Áurea (o que eu desconhecia) e foi servir ao exército. Aos 17 anos foi alfabetizado e, seguindo os seus estudos, aprendeu as leis, de forma autônoma, pois nunca cursou a faculdade de direito e passou a trabalhar defendendo outros negros escravos. Não parando por aí, escreveu artigos críticos sobre o direito ao ponto que, atualmente, o conjunto da sua obra é reconhecido como marco do direito nas conquistas humanas e do jornalismo sobre questões raciais brasileiros.

     Então, penso: “quanta luta temos em nossas mãos!” Resgatar nossos antepassados, questionar nossas autoridades e contribuir para nossa sociedade. Assim, presto essa pequena homenagem na tentativa de reparar minha ignorância, trazendo meu ponto de vista a partir da Psicanálise, ofício a que me dedico, sobre a escravidão. A tirania, a discriminação, a escravidão para mim, são retratos de um superego cruel, rígido e ditador que não acolhe as diferenças, inclusive, as internas com suas múltiplas possibilidades de agir e ser, de nossa feminilidade e masculinidade, ou seja, cala nossa identidade multicolorida e única. Temos muito o que crescer como sociedade entendendo nossos “pais e mães”, “bons e maus” - parafraseando a psicanalista Melanie Klein- e podemos nos identificar com aquilo que eles tiveram de melhor para nos oferecer.

     E aí me vem outra pergunta: “como negamos ou ainda desconhecemos a história de tantos personagens heroicos de nossa história como ele?” “Por que?” “Para que?” “Ser sempre o Brasil vira-lata?” “Depender de outras economias e culturas?” Parece-me agora que Luís Gama foi um gigante em seu amor por si e pela vida, superando muita dor e decepção e por isso é um mito brasileiro de resistência e superação de sua condição humana de sofrimento. Assim, como fez o homenageado, eu penso que é preciso assumir a nossa identidade com toda a pluralidade que nossos antepassados nos deixaram, com toda nossa riqueza, de todas as cores, sem deixar ninguém e nada para trás, por mais utópico que seja.

     Fica então a razão do meu resgate do homem Luís Gama: a necessidade dos fatos precisarem ser relatados juntamente com seus personagens, para que possamos saber o chão e os ombros em que estamos andando e nos apoiando e, por fim, termos a possibilidade de escolher melhor os caminhos que queiramos trilhar e os autores, que ler.

 

Autora: Helena Pinho Sá

Membro do Instituto de Psicanálise da SPRPE;
Membro do Núcleo Psicanalítico de Aracaju;
Membro do Instituto Psicanalítico de Formação e Pesquisa Armando Ferrari;
Médica Psiquiatra pela Universidade de São Paulo (USP);

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Coordenação: Danilo Goulart