Entrevista - Fausta Romano (Psicanalista e presidente do IPFR)

11/05/2016

Nos dias 29 e 30 de Julho de 2016 o Instituto Psicanalítico de Formação e Pesquisa A.B. Ferrari promove em Aracaju o Congresso Internacional Sobre o Corpo em Psicanálise e IX Encontro Ítalo-Brasileiro de Psicanálise, trazendo a temática "Da sensação ao pensamento: a função organizadora dos órgãos dos sentidos". Para apresentarmos um pouco da história e dos caminhos do Instituto, realizamos uma entrevista com a psicanalista Fausta Romano, presidente do IPFR (Istituto Psicoanalitico di Formazione e Ricerca "Armando Ferrari" – Roma, Itália). A sede brasileira está localizada em Aracaju e será a promotora do Congresso, contando com o apoio local do Núcleo Psicanalítico de Aracaju.

Nesta ocasião, Fausta nos falou sobre a fundação do IPFR, a parceria com o Brasil, além de discutir as contribuições das reflexões de Armando Ferrari, como o Objeto Originário Concreto, o eclipse do corpo, a proposição analítica, entre outras construções importantes na forma de pensar e fazer a psicanálise. Confira:

* Entrevista conduzida pela Assessoria de Comunicação do NPA

NPA: Quais são os principais objetivos do Instituto? Além disso, é possível falar em um denominador comum que mantém uma unidade para a diversidade de perspectivas da psicanálise e permite, por exemplo, a aproximação entre países distintos, como é o caso das sedes do IPFR na Itália e no Brasil?

Fausta Romano: O Istituto Psicanalitico di Formazione e Ricerca “A.B. Ferrari" é uma associação sem fins lucrativos, fundada em 2005 pelo Prof. Armando B. Ferrari. A intenção dele era de formalizar a atividade do grupo de formação e pesquisa que trabalhava com ele na Itália há muitos anos (desde a década de 80 em pequenos grupos e a partir de 2000 em um único grande grupo), constituído por psicoterapeutas, psicanalistas, psiquiatras, médicos e artistas.

Como o próprio Ferrari afirmou, em uma entrevista concedida ao amigo e escritor Santucci:

Na Itália como no Brasil, eu considero “mestres” – isto é, fontes de aprendizagem, às vezes até mesmo “provedores” de intuições e soluções – os jovens ou menos jovens discípulos de minha equipe, com os quais faço questão de compartilhar o trabalho. Agora, em Roma, são cerca de cinquenta. Esse nosso trabalhar juntos – juntos descobrir e contrastar e nos corrigir em embates frequentes e às vezes acirrados – é para mim a matriz de meu contínuo enriquecimento e aperfeiçoamento. Uma ocasião para ser também perene discípulo, um condicionamento, se quiser, dentro daquela humildade que a indispensável carburação da ciência”. (Em: Le nuove confessioni di un italiano. Da amico ad amico. Armando Ferrari si racconta a Luigi Santucci, Chimera editore, Milão, Itália, 2010, tradução livre).

Esse posicionamento, essa maneira de viver a pesquisa científica e a psicanálise, é a base que permite, posteriormente, enfrentar a troca com outros pontos de vista e outras disciplinas, com a humildade e a honestidade do pesquisador, especialmente naquele tipo de ciência que tem, como fulcro central, o funcionamento psíquico no sistema indivíduo.

Ferrari, de origens italianas, viveu por cerca de quarenta anos de sua existência no Brasil, que considerava sua pátria, tal como a Itália, e, por isso, sua pesquisa e sua confrontação científica aconteceram com colegas dos dois países.

Após seu falecimento, decidimos dedicar o Istituto a ele, para indicar, com isso, nosso compartilhamento, não tanto e não apenas das hipóteses científicas que nos deixou, não saturadas, ao falecer, mas, sobretudo, da sua maneira de considerar a liberdade e a responsabilidade de todo indivíduo, o respeito por si e, portanto, pelo outro, e os aspectos fundamentais da pesquisa científica: colaboração, confrontação direta e honesta, humildade.

NPA: De que maneira a obra e o pensamento de Armando Ferrari pode contribuir para o repertório teórico-clínico dos psicanalistas e psicoterapeutas dentro dessa orientação? Levando isso em consideração, poderia nos falar sobre os conceitos de Objeto Originário Concreto e de proposição analítica, por exemplo?

Fausta Romano: A hipótese fundamental de Ferrari insere-se na esteira de pensamento psicanalítico que, a partir de Freud e através de Melanie Klein e Wilfred Bion, interessa-se em estudar, graças à prática clínica, de que maneira, da dimensão corporal, derivam e adquirem forma as funções psíquicas. Colaborador de Bion entre 1973 e 1979, desenvolve e transforma a hipótese psicanalista do inglès, chegando a imaginar que a dimensão corporal é, ao mesmo tempo, origem e objeto primeiro da mente, que, por emergir da corporeidade, tem, como escopo principal, o arrefecimento da intensidade das sensações e percepções que dela derivam, com o objetivo de permitir um funcionamento quanto mais possível harmônico e apto a enfrentar as vivências internas e externas da vida. Este processo é denominado por Ferrari eclipse do corpo.

E, por esta razão, a dimensão corporal é definida como Objeto Originário Concreto (O.O.C.): Objeto porque único objeto da mente, que dela nasce; Originário porque é o elemento originário de nossa individualidade e originalidade; Concreto, porque a concretude é sua característica principal.

Desta colocação derivam, de um lado, uma substancial alteração de todos os conceitos fundamentais da teoria psicanalítica, que se transformam em funções dinâmicas e processuais entre si em recíproca relação (por exemplo, o conceito freudiano de Eu transforma-se naquele de Configuração egoica; o Complexo de Édipo torna-se Constelação edípica; o conceito bioniano de Barreira de contato vira uma Rede de contato), e, por outro lado, deriva também uma significativa modificação da maneira de considerar a Relação analítica: esta relação baseia-se no reconhecimento da responsabilidade do analisando para si mesmo, tendo o objetivo de favorecer um contexto em que analista e analisando cooperem para o realizar-se de momentos de experiência de si mesmos, o analisando indo pela primeira vez em direção a si mesmo e o analista retornando, voltando para si mesmo. Não é importante saber o que é verdadeiro, mas a maneira e a forma com que, cada um, vai construindo a si mesmo e, para isso, o instrumento eletivo da relação analítica, a interpretação, torna-se proposição analítica: proposta que o analista constrói através da escuta daquilo que o dizer do analisando suscita nele e que propõe ao analisando, ao qual cabe a responsabilidade de aceitar, rejeitar ou transformar tal proposição. Uma Proposição que não explica e não conserta, mas ativa percepção e experiência, elementos fundamentais para o inaugurar de processos transformadores: aqui também humildade, honestidade, respeito, liberdade e responsabilidade.

NPA: Existem peculiaridades em relação à experiência analítica com adolescentes em comparação com o trabalho com adultos?

Fausta Romano: Se do nascimento até aquela idade do homem que Freud definiu como latência, a função psíquica originada pela corporeidade desde o nascimento se desenvolve articulando-se nas várias funções, e conseguindo, progressivamente, eclipsar o corpo, projetar sobre as sensações corporais sua sombra benéfica, com a chegada das transformações profundas, radicais e rapidíssimas da dimensão corporal na adolescência, o corpo emerge novamente do eclipse e a mente, deslumbrada, emudece diante do manifestar-se daquilo que não é mais seu próprio corpo, aquilo que, até então, aprendera a conhecer e gerir. Isto gera no adolescente um estado de tamanha perturbação, às vezes até de angústia, que é necessário certo tempo para que a relação entre aquela mente e aquele novo corpo possa assumir uma forma harmônica. Na tentativa de cavalgar este novo e desconhecido animal que tenta derrubá-la - seu novo corpo -, a mente adota formas de proteção específicas comparáveis, mas não necessariamente coincidentes, com aquelas formas que são consideradas psicopatológicas.

Na hipótese de Ferrari, atenção peculiar é dada a esta fase em que, definitivamente, o indivíduo se torna aquele homem ou aquela mulher que será daquele momento em diante, e a considera uma fase peculiar do ser humano, com características próprias, diferentes da infância e da idade adulta quanto ao funcionamento psíquico e as defesas. E, por isso, propõe com extrema atenção, uma abordagem clínica ad hoc, específica para o tipo de situação que representa.

Em especial, destaca, em certas modalidades do adolescente para enfrentar a mudança, uma tendência ao retraimento, ao desânimo, ao medo de não conseguir. Nesses casos, o fato de esquivar as atividades, as relações sociais, procurar abrigo em leituras, filmes, videogames, redes sociais para não enfrentar o medo e a angústia da mudança, manifesta-se como uma tendência depressiva que Ferrari denomina proto-depressão, para fazer a diferença com a depressão da idade adulta: nesta forma depressiva, de fato, estão significativamente presentes instâncias vitais, ao passo que, no estado depressivo adulto, prevalecem as instâncias de morte. Poder reconhecer este peculiar estado emocional no adolescente pode ser uma possibilidade de ajudá-lo a enfrentá-lo tempestivamente, antes que isso se transforme em uma condição de vida constante e, por vezes, limitante.

NPA: Quais são as perspectivas do IPFR acerca dos Encontros Ítalo-Brasileiros?

Fausta Romano: Desde seu retorno à Itália, em 1976, Ferrari continuou a colaboração com os colegas brasileiros de São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Brasília, Aracaju etc., criando ocasiões de encontro e discussão científica, com congressos que aconteceram, alternativamente, no Brasil e na Itália, desde 2001.

Esses congressos eram definidos Encontros Ítalo-Brasileiros, dada a importância central atribuída à discussão entre oradores e público. É por isso que os artigos, os trabalhos, são enviados antecipadamente a todos os inscritos e não são lidos durante o congresso; somente alguns pontos centrais são retomados e lembrados pelos moderadores, de modo que o tempo seja totalmente dedicado à realização da discussão com o público sobre os temas propostos. Encontro, portanto, e não exposição de artigos; debate e construção, juntos, de uma experiência que, no final, deixa em todos, público e oradores, a marca, a sensação de ter desenvolvido um trabalho conjunto, uma experiência vivida.

Nosso Instituto pretende manter esta modalidade de trabalho, tanto internamente ao próprio grupo, quanto em todas as ocasiões de encontro que se podem realizar, partindo do pressuposto que isto possa ser uma maneira construtiva para poder estudar e desenvolver hipóteses em um campo ainda desconhecido, como é o funcionamento da mente. Por isso, na medida do possível, promovemos ocasiões de encontro e troca, não apenas com outras maneiras de entender o trabalho psicanalítico, mas também com outras disciplinas que tem, como objeto de estudo, o homem: a genética, as neurociências, a arte, a literatura, a medicina (homeopática e tradicional), a psiquiatria etc.

Nosso escopo é continuar o estudo do funcionamento mental e da relação entre dimensão corporal e dimensão psíquica, a partir da prática clínica, fonte formidável de experiência e aprendizagem; promover a formação clínica e a pesquisa; favorecer trocas interdisciplinares.

Foi por isso que inauguramos uma sede brasileira do Instituto Ferrari em Aracaju, com a presença e a colaboração de colegas do Núcleo Psicanalítico de Aracaju que, desde 2003, compartilham conosco esta aventura e este modo de fazer ciência e pesquisa científica.

Tenho o prazer e a honra de comunicar que será justamente o Instituto Psicanalítico de Formação e Pesquisa “A.B. Ferrari” de Aracaju o promotor do próximo Encontro Ítalo-Brasileiro, nos dias 29 e 30 de julho de 2016, com o patrocínio do I.P.F.R. “A.B. Ferrari” de Roma e do Núcleo Psicanalítico de Aracaju. O tema proposto abrange, especialmente, a forma com que da percepção, e através dos órgãos de sentido, possam ativar-se processos de pensamento e de que modo o perceber possa constituir um instrumento cardeal no âmbito da relação analítica.

Para saber mais:

- Congresso Internacional Sobre o Corpo em Psicanálise e IX Encontro Ítalo-Brasileiro de Psicanálise

- Biografia de Armando Ferrari no site da FEBRAPSI

- Algumas obras de Ferrari