Uma Leitura Psicanalítica da Dependência Química

21/03/2014

Uma Leitura Psicanalítica da Dependência Química[1]

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Parece cocaína
Mas é só tristeza
Talvez tua cidade
Muitos temores nascem
Do cansaço e da solidão
Descompasso, desperdício
Herdeiros são agora
Da virtude que perdemos...

Há tempos tive um sonho
Não me lembro, não me lembro...

Tua tristeza é tão exata
E hoje o dia é tão bonito.

(Russo, Bonfá e Villa-Lobos. Há Tempos, 1989)

De acordo com o doutor em Sociologia Leonardo Mota (2009), o uso de substâncias psicoativas está presente em toda a história da humanidade. Existem indícios de que os aborígenes do Timor, há cerca de 13 mil anos, mascavam nozes de bétele para provocar um estado parecido ao da embriaguez (RAMOS, 2003 apud MOTA, 2009). Na América do Sul, foram encontrados grãos de mescal advindos da planta alucinógena SophoraSecundifloranas tumbas paleolíticas de 10 a 11 mil anos (CARNEIRO, 1994 apud MOTA, 2009). Na Roma Antiga, o ópio foi usado como calmante e analgésico (MOTA, 2009). Nas tribos indígenas brasileiras, várias plantas alucinógenas faziam parte de rituais. Em cada época da história da humanidade, essas substâncias tiveram determinados objetivos para o consumo. Não houve momento histórico no qual as drogas não estivessem presentes. Mas é no século XX que o uso e abuso de drogas se configura como um problema social a ser combatido. As drogas vêm assumindo uma importância cada vez maior na sociedade atual, tornando-se uma questão de saúde pública. Leis são promulgadas na tentativa de barrar o abuso que passa a ter um caráter desordenador da sociedade.

Podemos destacar, segundo Mota (2009), duas principais diferenças entre a relação do homem primitivo e do civilizado com as drogas: nas culturas primitivas, não era possível isolar o princípio ativo das plantas alucinógenas para aumentar seu poder de ação, e as substâncias psicoativas não eram alvo de comercialização para a obtenção de lucros. Foi com a revolução industrial que as drogas começaram a ser produzidas em maior escala. A morfina foi isolada em 1804, a cocaína surge em 1859 e a heroína em 1898. A princípio, as drogas foram isoladas com fins puramente medicinais. A título de curiosidade, em 1884, Freud se dedicou a estudar os efeitos da cocaína e se utiliza como sujeito da pesquisa. Ele publica sua monografia “Uber Coca”, em julho de 1884, recomendando o uso da cocaína, e a utiliza para tratar os sintomas da abstinência da morfina. (SILVEIRA FILHO, 1995). Em 1885, Freud começa a perceber os primeiros sintomas prejudiciais da cocaína: a dependência. Em 1887, publica o artigo “Angústia e Medo da Cocaína”, numa tentativa de se defender das críticas sofridas por ter recomendado tal substância para uso na psiquiatria (SILVEIRA FILHO, 1995).

Kalina (1999) considera a drogadição uma doença psicossocial com o envolvimento de fatores individuais, familiares e sociais. A sociedade seria indutora do consumo de drogas quando envia a mensagem que a vida não vale nada. Isso ocorre, segundo o autor, na medida em que há produção de armas de destruição em massa, propagandas sobre drogas legalizadas, uma sociedade centrada no poder de consumo e na obtenção de lucros. A indução ao uso de drogas aparece também na supervalorização de ídolos usuários de drogas e/ou suicidas em potencial, na existência do narcotráfico dominando cidades inteiras, na destruição das reservas ecológicas do planeta, na corrupção, dentre outros motivos.

Atualmente, segundo Mota (2009), observamos que

cada sociedade tende a produzir suas próprias ‘patologias’. No caso das sociedades modernas, a combinação entre o desenvolvimento dos processos de destilação do álcool, a manufatura de drogas sintéticas cada vez mais potentes e um meio social altamente competitivo e incentivador de desejos ilimitados produz um cenário ideal para a proliferação das dependências químicas. (p. 46)

Com isso, é possível notar que as modificações no aparelho psíquico das pessoas também ocorrem em um ambiente social e histórico determinado.

CONSTRUÇÕES TEÓRICAS

A dependência química é nomeada pela Classificação Internacional de Doenças (CID-10) como síndrome de dependência e é caracterizada como

um conjunto de fenômenos fisiológicos, comportamentais e cognitivos, no qual o uso de uma substância ou classe de substâncias alcança uma prioridade muito maior para um determinado indivíduo que outros comportamentos que antes tinham maior valor. Uma característica descritiva central é o desejo de consumir drogas psicoativas, álcool ou tabaco. Pode haver evidência que o retorno ao uso da substância após um período de abstinência leva a um reaparecimento mais rápido de outros aspectos da síndrome do que ocorre com indivíduos não dependentes. (1993, p. 74)

Para fazer o diagnóstico, é importante observar aspectos como a compulsão ao uso, o estado de abstinência, as evidências de tolerância, o abandono de outros interesses em prol das drogas e a persistência no uso, apesar das consequências nocivas. A nomenclatura utilizada para designar a dependência química é vasta: drogadição, adicção, toxicomania, fármaco-dependência, entre outras. O termo adicção é derivado do latim e significa uma adoração ou submissão a um senhor. O adicto é um escravo do seu hábito (WHITE, 1998 apud MOTA, 2009).

A contribuição da Psiquiatria, no caso das adicções, é de fundamental importância na medida em que postula a dependência química como uma síndrome passível de tratamento. Por sua vez, a psicanálise nos auxilia a compreender os mecanismos psíquicos envolvidos nesse processo patológico. A primeira contribuição psicanalítica para o entendimento da dependência química foi dada por Freud (1905) em seu trabalho: “O Chiste e sua Relação com o Inconsciente”. Freud associou a drogadição com a satisfação de necessidades infantis primárias (KALINA, 1999). Postulou que a origem das drogadições está na fase oral do desenvolvimento. Assim, a toxicomania pode ser interpretada como uma fixação oral. A maior contribuição de Freud, nesse caso, foi descrever a dinâmica da oralidade que inclui aspectos como a intolerância a espera na satisfação de desejos e a importância da fixação e da regressão (SILVEIRA FILHO, 1995). Em “Luto e Melancolia” (1917), Freud afirmou que a embriaguez alcoólica pertence ao grupo dos estados maníacos na medida em que se produz estados eufóricos e esses, por sua vez, asseguram que algo não apareça na consciência. “Aquilo que o ego dominou e aquilo sobre o qual está triunfando permanecem ocultos” (p. 259). Vários autores começaram a estudar a toxicomania sob a vertente da psicanálise partindo das primeiras prerrogativas de Freud. Pierre Clark (1919 apud KALINA, 1999) estudou a relação entre o alcoolismo e a depressão. Kielholz (1919 apud SILVEIRA FILHO 1995) descreveu a toxicomania como uma neurose narcísica relacionada à psicose maníaco-depressiva. Rado (1933 apud KALINA, 1999) diz que a função da droga é anestesiar o sofrimento do adicto em decorrência de suas características depressivas e maníacas e associou a toxicomania à liberação de impulsos destrutivos. Para Simmel (1928-1949), a droga atua neutralizando o superego, deixando o ego livre para reencontrar a “autoestima perdida por meio de um processo regressivo que vai fazendo do adicto uma criança cada vez mais narcisista, que organiza a sua atividade consciente obedecendo, quase que exclusivamente, ao principio do prazer infantil” (apud KALINA, 1999, p. 27). Rosenfeld (1965) acredita que o adicto, por suas fragilidades, tenta fugir dos estados depressivos que o ameaçam recorrendo à droga com o objetivo de produzir os estados maníacos.

Para Rosenfeld, o fenômeno da toxicomania não se deve apenas à regressão oral do toxicômano, mas também a uma excessiva divisão do seu ego e seus objetos internos, a qual produziria uma extrema fragilidade egóica. Segundo ele, o toxicômano estaria fixado na posição esquizo-paranóide, embora tenha atingido parcialmente a posição depressiva, na qual dificilmente poderia tolerar o seu ingresso total. Com a droga, justamente, o que ele tenta é evitar cair na posição depressiva porque representa a incorporação dos seus aspectos dissociados. A possibilidade desta incorporação implicará para o toxicômano na desintegração total de seu ego, isto é, a psicose. Para Rosenfeld, o toxicômano encontra na droga um caminho quimicamente efetivo para superar sua fragilidade egóica e assim, supostamente, evitar sua desintegração psicótica. (SILVEIRA FILHO, 1995, p. 26)

Com isso, a droga passa a ser um objeto idealizado que irá neutralizar a ansiedade paranóide que provém da ameaça constante do núcleo psicótico. A droga entra com a finalidade de conter a parte psicótica da personalidade (BION, 1957) do adicto, mantendo uma estruturação, mesmo que frágil. Em muitos casos, essa estruturação não consegue se manter, pois quanto mais cindida está a personalidade do indivíduo, maior é o risco de a droga desencadear um surto psicótico. É possível perceber a utilização de mecanismos de defesa primitivos próprios da posição esquizo-paranóide, postulada por Melanie Klein (1946), tais como: identificação projetiva, negação, idealização, cisão e pensamento onipotente.

Utilizando como referência a teoria winnicottiana, no desenvolvimento emocional do dependente químico, ocorreram falhas ambientais em um estágio precoce, especificamente na passagem da fase de dependência absoluta para a fase de dependência relativa (WINNICOTT, 1963), as quais impossibilitaram o desenvolvimento adequado. A fase de dependência absoluta ocorre após o nascimento. É o momento em que o bebê é totalmente dependente da mãe ou do cuidador. Ele ainda não é capaz de perceber que seu corpo é separado do corpo de sua mãe, já que são pessoas diferentes. Nessa fase, a mãe deve adaptar-se da forma mais completa possível às necessidades do bebê. Assim, a mãe possibilita que o bebê viva as necessárias experiências de onipotência. Por exemplo, se o bebê tem fome, a mãe oferece o seio para alimentá-lo. Com isso, o bebê vive a ilusão de que foi ele quem criou o seio, que ele cria a realidade. Essas experiências de ilusão, de ser o criador do mundo, são muito importantes para um desenvolvimento saudável. Com o desenvolvimento, é natural que o bebê, aos poucos, viva a experiência de separação da mãe; que possa ir percebendo que ele e a mãe são pessoas separadas física e psicologicamente. É a fase de dependência relativa, que se desenvolve a partir dos cinco ou seis meses de idade. A mãe vai inserindo o principio de realidade, desiludindo o bebê gradativamente. As repetidas experiências de ilusão possibilitaram o surgimento de uma área intermediária de experiência entre a realidade subjetivamente percebida e a realidade objetivamente percebida denominada espaço potencial (WINNICOTT, 1951, 1975). É uma área intermediária entre a ilusão e a realidade. É aqui que os objetos e fenômenos transicionais (WINNICOTT, 1951, 1975) têm o seu lugar e são esses que muito ajudam o bebê na elaboração da separação com relação à mãe. Os objetos transicionais são objetos eleitos pelo bebê, como ursinhos, fraldinhas, a ponta do cobertor. São os sons balbuciados, maneirismos etc. O objeto transicional representa, ao mesmo tempo, a realidade interna e externa e oferecem conforto ao bebê. Na medida em que a criança vai se desenvolvendo, o objeto transicional vai perdendo seu significado e é deixado de lado, podendo ser resgatado em alguns momentos difíceis, que exijam maior proteção. Os objetos transicionais não são nem puramente imaginação, nem puramente realidade. Representam a entrada no mundo simbólico. O objeto existe na realidade, mas seu significado é simbólico.

No caso da dependência química, a patologia se instala na medida em que há a cronificação do objeto transicional, isto é, quando a relação com o objeto persiste de modo exclusivo e prolongado. Dessa forma, o objeto não serve para elaborar a ausência materna e sim para negá-la. O uso cronificado implica a ilusão de que o objeto é a mãe. Isso ocorre, geralmente, quando há repetidas falhas relacionadas ao cuidado materno, especialmente nesse caso, na apresentação dos objetos ao bebê na fase de dependência relativa. O contato com os objetos passa a ser mais importante do que o contato com as pessoas, principalmente no que se refere ao apaziguamento de angústias. Com isso, instala-se uma tendência a buscar objetos concretos para aplacar o sentimento de vazio, angústia e solidão (ABADI, 1998). Assim, as substâncias psicoativas são fortes candidatas a exercer esse papel. Kalina (1999) corrobora com essa ideia na medida em que descreve as famílias dos dependentes químicos como psicotóxicas, isto é, que recorrem a remédios, álcool, excesso de comida, entre outros, para lidar com as angústias.

A teoria do pensamento de Bion (1961) também nos auxilia na compreensão de determinados aspectos presentes na dependência química, tais como a dificuldade de pensar antes de concretizar um ato e a pouca tolerância à frustração. Segundo esse autor, o pensamento nasce do encontro entre uma pré-concepção (disposição inata que corresponde à expectativa de um seio) e o não seio, ou seja, a frustração. Mas o pensamento irá surgir somente se houver a capacidade de tolerar frustração, tolerar a falta, a ausência do seio. Assim, com a produção de pensamentos, a mente se desenvolve; do contrário, quando não há tolerância, são produzidos apenas objetos maus que se prestam somente para evacuação (elementos beta). Dessa forma, o aparelho de produção de pensamentos fica perturbado, diminuindo a capacidade de pensar. Logo, há uma deficiência na capacidade de simbolização, fazendo com que as atuações se tornem constantes.

CLÍNICA

Os Homens Ocos

Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada. Ai de nós!
Nossas vozes dessecadas,
Quando juntos sussurramos,
São quietas e inexpressas
Como o vento na relva seca...

Fôrma sem forma, sombra sem cor

Força paralisada, gesto sem vigor.

(ELIOT, T. S., tradução de Ivan Junqueira, 1943)

De acordo com Monteiro (2000), as principais características do dependente químico são: baixa tolerância à frustração, baixa autoestima, compulsividade,indisciplina, desorganização, dependência afetiva, imaturidade e regressão, agressividade, sedução, dissimulação e mentira, imediatismo, ser anti-herói, a inversão de valores, negação do estado de dependência, inconsciência dos perigos e consequências, pessimismo e comportamento chantagista e ameaçador. Na prática clínica, podemos observar que essas características são facilmente encontradas em um dependente químico. Mas é preciso olhar mais a fundo, enxergar além das aparências, além das defesas psíquicas, pois quanto mais intensamente são utilizados os mecanismos de defesa, maior a fragilidade do ego (KLEIN, 1946). Assim, essas características descritas por Monteiro escondem sentimentos muito primitivos, vivências de profundo desamparo. Desamparo este tão aterrorizante que necessita ser anestesiado para ser tolerado. Nesse sentido, o primeiro desafio do analista é estabelecer um vínculo terapêutico com o dependente químico. Isso só será possível se o profissional conseguir entrar em uma sintonia fina com o seu paciente, entrar no estado que Bion (1970) denomina de at-one-ment, isto é, estar-uno-a, em sintonia com a realidade psíquica do paciente. É o estabelecimento de uma relação profunda entre analista e analisando, propiciando um compartilhamento da experiência emocional, permitindo que possa se desenvolver um sonhar a dois. Com isso, o analista pode se aproximar de experiências emocionais primitivas, de sofrimentos profundos do paciente, com o objetivo de auxiliar na sua elaboração. É necessário que o analista possa captar as nuances da dor do paciente e comunicá-las de forma que ele as reconheça como próprias. As intervenções devem ser feitas rapidamente, pois, se o paciente não se sentir tocado nas primeiras sessões, haverá a interrupção do tratamento, uma vez que a tolerância à frustração é pequena. Há um artigo de Stern et al., chamado “Mecanismos Não Interpretativos na Terapia Psicanalítica: Algo mais Além da Interpretação” (2000), que retrata dois aspectos dentro do processo de análise que produz mudança. A primeira é a interpretação, que reorganiza o mundo interno. A segunda é o momento do encontro entre analista e analisando, que gera uma ligação autêntica, emocional e, consequentemente, altera o campo relacional intersubjetivo. Para todos os pacientes, esses fatores são importantes. Mas, especialmente no caso do dependente químico, a intensidade desse encontro precisa ser maior. Ele precisa sentir que realmente há uma pessoa ali, presente, inteira e que estará com ele percorrendo os caminhos dolorosos necessários para o seu desenvolvimento. Estabelecer um vínculo terapêutico com um dependente químico não é tarefa fácil, pois, muitas vezes, eles criam situações para serem abandonados, reeditando o trauma vivenciado. Mas quando conseguimos estabelecer o vínculo, o que escutamos é parecido com o verso da música “Não me deixe só”, de Vanessa da Mata (2002):

Não me deixe só

Eu tenho medo do escuro

Eu tenho medo do inseguro Dos fantasmas da minha voz.

O paciente tem muito medo, pois a sua continuidade de ser foi interrompida, impossibilitando a integração psíquica que, por sua vez, também impossibilita a capacidade de estar só. O colapso Winnicottiano[2] já aconteceu. E ao escutar essas palavras, o analista precisa exercer a função holding, descrita por Winnicott (1960), isto é, adaptar-se às necessidades do paciente, acompanhando-o no seu ritmo, a fim de implementar uma adaptação ativa às suas necessidades. Isto é importante para desenvolver o senso de continuidade de ser e promover a integração psíquica, colaborando assim para a formação da identidade do paciente. O dependente químico precisa de um analista que, a princípio, se permita estabelecer um vínculo simbiótico, uma vez que todo o percurso do seu desenvolvimento precisará ser revivido na relação transferencial para haver uma elaboração. O analista precisa retornar com o paciente no ponto em que ele parou. Waks (1999) descreve o tipo de transferência que se estabelece no setting analítico com o paciente dependente químico como uma transferência canibal, ou seja, uma transferência que é ávida, voraz, excessiva e indiscriminada. O setting, segundo esse autor, é o “lugar onde o analista se entrega de corpo e alma para servir de continente ao vazio simbólico do paciente” (p. 6). Nessa etapa do tratamento, o paciente demanda muito do analista e, muitas vezes, a qualquer hora do dia ou da noite. Isso ocorre porque o dependente químico ainda não desenvolveu a capacidade de estar só. Tal qual descrita por Winnicott (1958), ele necessita da presença do analista para adquiri-la. Segundo o autor, a capacidade de estar só é desenvolvida na experiência de ficar só na presença de alguém. Dessa forma, o adicto tem uma grande ansiedade de separação e usa seu analista, a princípio, para acalmar ou aplacar sua ansiedade e seu sentimento de solidão. Mas na medida em que o trabalho evolui, o paciente se desenvolve emocionalmente, adquire novas capacidades e caminha para a etapa de dependência relativa, e depois, com persistência, evolui para a etapa rumo à independência (WINNICOTT, 1963).

Como foi dito anteriormente, o paciente dependente químico tem uma forte tendência à atuação, seja por meio do próprio uso de drogas, seja por meio de atos impensados ligados à agressividade contra si e/ou contra terceiros, envolvimento com a criminalidade e destruição de algo já conquistado. As intervenções surgidas na intersubjetividade entre paciente e analista parecem surtir um efeito maior. Ferro (2010) nos ensina a respeito do uso terapêutico de metáforas e imagens que surgem nesse contexto intersubjetivo. Descrevo, a seguir, três vinhetas clínicas que exemplificam o exposto anteriormente.

Exemplo 1: uma paciente de 31 anos, dependente química em abstinência há um ano e oito meses, casada e com um filho de cinco anos, começou a se envolver em uma relação extraconjugal com uma pessoa usuária de substâncias psicoativas. Estava contando na sessão analítica sobre o encontro com o amante e as manobras para não ser descoberta pelo marido e para não usar drogas com o novo parceiro. A intervenção utilizada foi: está me vindo uma imagem na cabeça: o Júlio, seu filho, correndo pela casa com as velas acesas em suas mãos; e o pior, ele está muito perto das cortinas. A paciente disse: Nossa! Que perigo. Eu estou fazendo isso, né?! Conversamos sobre como era correr o risco de destruir e perder tantas coisas que ela já havia conquistado. Na sessão seguinte, ela relata que não conseguia parar de pensar na cena do Júlio e que resolveu não dar prosseguimento ao relacionamento extraconjugal.

Exemplo 2: paciente de 22 anos, usuário de crack e com histórico de delinquência, contava em uma sessão como sofreu na infância com as maldades que o pai lhe impingia. Aos cinco anos, seu pai o levou ao centro da cidade e sumiu para ver qual seria a sua reação. O paciente ficou desesperado. Somente depois que ele chorou muito, o pai reapareceu. Em outro momento, o pai lhe deu algumas pimentas para comer dizendo que eram frutinhas e sua boca ficou ardendo por dias. Esse quadro se completava com as surras que o paciente levava com frequência. Depois de trabalhar um pouco seus sentimentos com relação aos fatos narrados, disse-lhe que estava me vindo à mente a imagem de uma senhora “velhinha” sendo assaltada. O ladrão havia levado toda a sua aposentadoria e ela estava se sentindo completamente perdida, desamparada, invadida, agredida. Ele arregala os olhos e diz emocionado: é isso que eu sinto! Mas quando somos assaltados, é isso que sentimos? – Eu fiquei igual ao meu pai, então? E começa a relatar todas as maldades que ele mesmo cometeu, inclusive com o sobrinho de quatro anos. Na sessão seguinte, ele conta que o sobrinho estava fazendo bagunça e ele gritou com a criança, mas, quando o menino ia chorar, ele o abraçou. Disse que tudo que ele queria na idade do sobrinho era que seu pai lhe desse um abraço.

Exemplo 3: paciente de 28 anos, usuário de crack, imerso em uma depressão profunda, com graves impulsos suicidas. Nessa fase, seu atendimento era realizado cinco vezes por semana. Em determinada sessão, ele descrevia como sua vida era infeliz, como ninguém sentiria sua falta caso morresse; que a sua existência só havia causado problemas. Então, fui sentindo toda a sua angústia e me veio uma cena: “uma menina de oito anos estava internada em um hospital para fazer uma cirurgia grave. Sua mãe entrou no quarto trazendo brinquedos e guloseimas. A menina disse para a mãe: ‘eu não quero brinquedos, quero colo porque estou com muito medo’”. O paciente se emocionou e me contou do medo que sentia quando se mudou para outra cidade aos 11 anos. Ele esperava sua mãe voltar do trabalho todos os dias no ponto de ônibus, e no dia em que ela atrasava, mesmo por poucos minutos, ele entrava em pânico, achava que nunca mais voltaria a vê-la, sofria muito. Essa cena possibilitou a emergência de um vasto material psíquico ligado a uma falta de constância objetal que foi elaborado aos poucos. Depois dessa sessão, o paciente não falou mais em suicídio e foi gradativamente melhorando o quadro de depressão.

De acordo com Ferro (2010), é importante que as imagens ou metáforas relatadas pelo analista não sejam previamente constituídas, mas algo que se produz no momento presente da sessão. Thomas Ogden (1996) denomina esse fenômeno de terceiro analítico. Resumidamente, o terceiro é algo que nasce da intersubjetividade do analista e analisando, mas não pertence a nenhum separadamente, só pode existir no encontro da dupla. O terceiro analítico, geralmente, se manifesta por meio de imagens, sensações ou sentimentos produzidos na mente do analista no momento do encontro terapêutico. O analista capta o terceiro por meio da função reverie, descrita por Bion (1966)[3], e dá voz à experiência. Desse modo, analista e analisando vivenciam o passado vivo do analisando criado intersubjetivamente no encontro da dupla, possibilitando assim, sua elaboração e transformação. Thomas Ogden utiliza o terceiro para compreender com profundidade o que se passa no âmbito da transferência e contratransferência e, assim, fornece uma interpretação ao paciente. Ferro (2010) relata que a capacidade de sonhar do analista pode transformar sentimentos não elaborados do paciente em imagens afetivas, e essas podem ser comunicadas ao paciente. Dessa forma, o analista coloca o paciente em contato com o seu funcionamento onírico (do analista) e lhe transmite, pelo menos em parte, o método que utiliza para conseguir essa transformação. Isso oferece a chance ao paciente de, aos poucos, ir se apropriando desse método e sendo capaz de realizar suas próprias transformações. Com isso, o analista auxilia no desenvolvimento da função alfa do paciente, além de transformar elementos beta (BION, 1966) em elementos alfa (BION, 1966)[4]. Essa forma de intervenção, segundo Ferro, é importante principalmente para pacientes graves, pois permite o desenvolvimento da capacidade sonhante do paciente, a capacidade de transformar elementos beta em pensamentos. A reverie do analista pode ser expressa sob a forma de metáforas e imagens. Contudo, é importante ressaltar que, para ser comunicada ao paciente, a imagem deve passar pela avaliação do analista. É necessário que seja uma imagem continente das emoções que estão presentes no campo analítico, passíveis de elaboração. A imagem possibilita a ligação do material não elaborado com o mundo simbólico. Nesse caso, a imagem surge para dar voz a sentimentos e emoções. Funciona como continente transformador, uma vez que possibilita a transformação de elementos não elaborados em elementos elaborados e em pensamentos oníricos, além de permitir ao paciente sentir na pele a presença viva do analista, bem sintonizado com as suas emoções. Segundo Nicole Fabre (1998), “a imagem contém o afeto que se traduz em verbo” (apud PASSERINI, 2009, p. 14)[5]. Dessa forma, segundo Passerini (2009), a imagem tem uma grande capacidade de suscitar sentimentos e causar um impacto emocional gerador de mudanças. A imagem tem um acesso mais fácil ao inconsciente. A sua utilização diminui as resistências num processo terapêutico, justamente porque não saturam o campo. Ao contrário, elas o abrem possibilitando que o paciente expresse qualquer vivência que se ligue àquela imagem. Várias associações podem surgir como foi visto nos exemplos anteriores. O analista deve intervir de forma viva, firme e delicada ao mesmo tempo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Atender um paciente com diagnóstico de dependência química não é tarefa fácil. Experimentamos sensações e sentimentos intensos, devido à ampla utilização de mecanismos de defesa primitivos como a identificação projetiva. Lidamos com dificuldades para fazer vínculos, atuações e transferências “canibais”. Mas podemos concluir que, munidos das teorias psicanalíticas, de sensibilidade e capacidade de continência, podemos oferecer um bom tratamento ao dependente químico. É importante ressaltar a necessidade de um atendimento interdisciplinar, envolvendo psicólogos, psiquiatras e, muitas das vezes, grupos de apoio como alcoólicos anônimos e/ou narcóticos anônimos. É adequado também o encaminhamento da família para um processo terapêutico e/ou grupos de apoio, quando possível. Essas práticas, em geral, associadas ao tratamento psicológico, produzem resultados mais positivos.

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REFERÊNCIAS

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RESUMO

O objetivo deste trabalho é demonstrar como podemos compreender e atender um paciente dependente químico, por meio da psicanálise, levando em conta suas especificidades, além de considerar também os diversos fatores sociais, familiares e individuais que contribuem para a instalação dessa patologia. Para fins didáticos, este trabalho foi dividido em quatro partes. A primeira se refere ao uso e abuso de drogas na história da humanidade. A segunda é destinada às construções teóricas relacionadas ao tema. A terceira demonstra aspectos da clínica psicanalítica e os seus desafios. Por fim, há um espaço para as considerações finais.

Palavras-chaves: dependência química; psicanálise; tratamento; intervenção.

ABSTRACT

The purposeofthispaperistodemonstratehowwecanunderstandandtreat a chemicallydependentpatientthroughpsychoanalysistakingintoaccounttheirspecificities. In additiontoalsoconsideringthevariousfactors social, familyand individual factorscontributingtotheinstallationofthispathology. For thepurposeofinstruction, thisworkwasdividedinto four parts. The firstonereferstothe use and abuse ofdrugs in thehistoryofhumanity. The secondoneisdedicatedtotheoreticalconstructionsrelatedtothetheme. The thirdonedemonstratesaspectsofthepsychoanalyticclinicand its challenges. Lastly, thereisspace for the final considerations.

Keywords: addiction; psychoanalysis; treatment; intervention.

RESÚMEN

El objetivo de este trabajo es demostrar cómo podemos entender y atender a un paciente dependiente químico, a través de psicoanálisis, teniendoencuenta sus especificidades. Ademástambiéntenerencuentalos diversos factorescontribuyentessociales, familiares y individuales a lainstalación de esta patología. Conelfin de lainstrucción, este trabajo se divide encuatro partes. La primera se refiere a lautilización y el uso indebido de drogas enlahistoria de lahumanidad. La segunda está dedicada a lasconstrucciones teóricas relacionadas conel tema. La terceramuestra aspectos de la clínica psicoanalítica y sus desafíos. Por último, hayunespacio para lasconsideracionesfinales.

Palabras-claves: adicción, psicoanálisis, tratamiento, intervención.

Tânia Oliveira de Almeida Grassano

Membro em formação do Grupo de Estudos Psicanalíticos de Minas Gerais (GEPMG)

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data de publicação: 21/03/2014

[1]Trabalho apresentado na jornada de candidatos do GEPMG, em setembro de 2010, e no Congresso Brasileiro de Psicanálise, em setembro de 2011. Foi publicado na revista Trieb 2011 v. x n 1 e 2. Agradecimento à Bernadette Biaggi, aos colegas do GEPMG que contribuíram para o aprimoramento deste trabalho, em especial à Alane Moura, Edna Torres, Gisèle Brito e Sérgio Kehdy. Agradeço também à psicóloga e colega Thaísa Quintão.

[2] Termo descrito por Winnicott em seu artigo “O Medo do Colapso (breakkdown)”, de 1963. Refere-se a uma agonia original que provocou uma organização de defesas no paciente. É o impensável estado de coisas subjacente à organização defensiva.

[3]Reverie é um estado de mente receptivo, capaz de receber as identificações projetivas do paciente.

[4] Elementos beta são impressões sensoriais brutas que não se prestam à utilização como pensamentos e sim são objetos que se prestam à evacuação. Elementos alfa são as impressões sensoriais transformadas, digeridas pela função alfa em elementos utilizáveis como pensamento.

[5] Tradução realizada pela autora do presente trabalho.