Perversões: a falta do encontro

29/03/2014

Perversões: a falta do encontro.

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1. INTRODUÇÃO

Todos os dias as pessoas já acordam pensando em seus vários compromissos diários. Escovam os dentes pensando nas contas a pagar, no dia duro de trabalho, exaustivo, que deve se prolongar até à noite, quando terão algum curso para fazer ou um artigo para estudar. É assim todos os dias. Alguns podem se sentir privilegiados por poderem compartilhar suas atividades com o cônjuge, suas alegrias e suas tristezas. Outros o fazem com um ou outro amigo, não todos os dias, mas alguns dias da semana.

Essa capacidade de dividir, compartilhar sentimentos é uma dádiva que o homem tem para aliviar as tensões, para compartilhar as alegrias e, assim, poder ser entendido. Quando é compreendido, ele se desenvolve por completo e suporta melhor a vida e a realidade. Realidade essa que se coloca como capaz de testar nossa capacidade de sobrevivência a ela.

Entretanto, para poder compartilhar com o outro, é necessário, primeiramente, que alguém possa ensinar a compartilhar. Esse é um comportamento aprendido. E compartilhar envolve amor, envolve capacidade de doar um pouco de si para poder receber um pouco do outro.

Este trabalho procura falar de amor, ou melhor, da falta dele. A perversão é um funcionamento mental gerado por dificuldades na vinculação entre o bebê e os pais. Assim, a ideia é mostrar a perversão por um outro prisma, com um novo olhar, para além das práticas e comportamentos agressivos dos perversos, como tende a pensar a maioria das pessoas. Um olhar que observe o sofrimento humano por trás de atitudes primitivas de sobrevivência mental. Sofrimento que está presente em todos os homens e, portanto, encontra-se em qualquer um.

A perversão está presente no cotidiano. Todos os homens possuem, em maior ou menor grau, em algum momento da sua vida, uma característica do funcionamento perverso. A perversão é a limitação das formas de lidar com a realidade. É nesse contexto que o trabalho se desenvolve e, por isso, será abordada a perversão tanto na clínica como no cotidiano. Busca-se mostrar que ela está mais presente do que se pensa. Quando é possível perceber que o funcionamento perverso não é algo estranho a todos, torna-se mais fácil aceitar e lidar com esse funcionamento.

A dificuldade de manter o contato, o encontro com o outro, não pode ser observada com desdém ou discriminação. Deve ser olhada, acima de tudo, com amor, pois a capacidade de amar do outro e/ou do analista pode auxiliar no rompimento do círculo perverso de sofrimento. Através de uma nova experiência de amor com o analista é que o paciente pode ressignificar seus atos. Com o auxílio do amor e de novas experiências é que o perverso pode aprender a amar.

2. ABORDAGEM INICIAL DO ESTUDO PSICANALÍTICO

Quem primeiro ensina o ser humano a amar é a mãe ou aquele(a) que a represente. Não porque ela possua algum poder mágico ou especial. Ela é a primeira porque é ela quem primeiro o bebê conhece, por carregá-lo em seu ventre, por nutri-lo e cuidar dele. É com ela que tem o primeiro contato desde que é gerado. Assim, cabe a ela mostrar e agir de forma a ser uma espécie de primeiro modelo, que possui um alto poder de influência justamente por ser o primeiro, num período inicial do desenvolvimento, quando se está muito frágil. Os cuidados, o amor e a ligação da mãe com o bebê são extremamente importantes para a sobrevivência do “pequenino” num mundo visto como agressivo, como consequência de uma projeção de sua pulsão de morte.

Esse primeiro contato com a mãe é intenso. Para o bebê, só existe ele e a mãe, e ela é sua extensão. Ele acredita que supre todos os desejos dela, como ela deve suprir os dele. Então, por esse tipo de pensamento, ele acredita que é um ser completo. Que a mãe não precisa de mais nada além dele. Que o mundo se resume somente aos dois e que a mãe está ali para suprir as necessidades dele como fome, frio, entre outras.

Contudo, depois dessa intensa e primeira vinculação, é importante que apareça a figura de um terceiro, o pai, que procura abrir os caminhos do pequeno bebê para o restante do mundo. É o pai, ou quem o representa, que vai mostrar à criança esse mundo grande e diverso, ensinando o bebê a perceber que ele existe distintamente de sua mãe, que existe uma realidade além da mãe e do bebê e que ele deve aprender a suportá-la. É o pai, ou a representação dele através da mãe, que mostra que ele não é completo, que existem dois generous – o homem e a mulher – e que existe uma dimensão que o separa dos pais: o tempo. O tempo mostra que ele é um bebê que está se desenvolvendo, enquanto o pai e a mãe já são adultos.

É pelo amor e pela presença da realidade que o pequeno bebê se desenvolve e aprende, passo a passo, a driblar as adversidades e os conflitos que surgem, para que, quando adulto, possa fazer o mesmo com seu filho. É assim a lei da perpetuação da espécie. É a lei da vida. Entretanto, muitas vezes a realidade se faz por demais severa. Ela se torna mais agressiva do que o psiquismo pode suportar. Quando isso acontece, o ser humano busca criar alternativas para sobreviver e tolerar o que, então, está insuportável. Essas alternativas de sobrevivência psíquica nem sempre são a melhor forma de lidar com a realidade – se é que existe uma melhor forma para isso! E, quando essas novas tentativas de lidar com a realidade ocorrem, a percepção interna da vida é alterada.

Como explica Freud, no ciclo da vida, o desenvolvimento da libido passa por várias fases: oral, anal, fálica e genital. O desenvolvimento não ocorre de uma só vez, mas aos poucos, junto com a maturação biológica. Em cada fase do desenvolvimento dessa libido, aprende-se a sentir o corpo, numa descoberta constante do nosso “eu”. O ser em desenvolvimento descobre, no início da vida, como é bom mamar e tocar as coisas com a boca. Descobre, para a sua sobrevivência, que é prazeroso colocar algo na boca. A boca é a primeira zona de prazer do bebê. Freud chamou essa primeira fase de descoberta da boca como fase oral.

Depois da boca, o bebê descobre que o que ele ingere, de certa forma, é eliminado em forma de urina ou de fezes. Ele se dá conta de que produz algo, de que dele sai algo. Ele volta-se para os esfíncteres e aprende a controlar a eliminação do que produz. É a fase anal.

Freud continua dizendo que, passada a descoberta das sensações da fase anal, a criança descobre o seu sexo. Descobre que possui um pênis ou uma vagina. E descobre, também, que pode ter sensações agradáveis nessa região. Mas seu desenvolvimento biológico ainda não chegou ao final e, por não ser um adulto, ele não consegue realizar suas fantasias. Freud chama esse contato inicial com os órgãos sexuais de fase fálica. É nessa fase que surge o que ele chamou de Complexo de Édipo. Ele diz que o menino deseja profundamente a mãe, e a menina, o pai. A criança quer possuir seus primeiros objetos de amor assumindo uma posição central na vida deles. Só que isso não é possível porque o pai já possui a mãe. O bebê se dá conta de que não pode disputar o outro porque, enquanto ele é pequeno, o pai e a mãe já são adultos. Então ele tem medo de que o pai descubra suas fantasias e de que o machuque, ou castre. E a menina acha que já foi castrada, por não possuir o pênis que ela vê em seu pai. Freud chama esse medo de Complexo de Castração.

Assim, diante do Complexo de Édipo e do medo da castração, a criança suprime seus desejos. Ela os esconde dela mesma jogando-os para um lugar a que ela não tem acesso, de forma que não precise ficar se lembrando deles o tempo todo: o inconsciente. Ao período de esquecimento das fantasias sexuais, Freud chama de período de latência.

Esquecida, por proibição da castração, de buscar um prazer autoerótico, a criança volta-se para o mundo e para o outro. É um movimento de conhecer tudo o que está ao redor. Essas fantasias contidas voltam do inconsciente sob a forma de curiosidade sobre a realidade e o que é externo. A criança começa a investigar o mundo e a descobrir que compartilhar sentimentos e emoções com o outro é prazeroso. Ou, pelo menos, alivia as dores e angústias internas. Ela aprende não só a receber amor, mas a dar também.

Durante essa fase de latência e de aprendizado, seu corpo atinge o tamanho adulto. A criança vai se tornando apta tanto psíquica como biologicamente para um vínculo maior e mais próximo com um outro. Nesse momento, ela pode se relacionar com o outro, como a sua mãe e o seu pai. Ela aprendeu, através das próprias experiências com eles e de suas observações dos dois, como é amar e dividir prazeres e angústias. Nesse momento, a criança se torna um homem ou uma mulher mais integrado(a). Com o corpo adulto, todas as fontes de prazer anteriores, que apareciam uma de cada vez e, portanto, eram parciais, voltam ao mesmo tempo. O homem aprende a ter prazer de várias formas, que culminam no prazer sexual genital, que, nesse sentido, é o mais completo, pois une os demais. Todos os outros prazeres vividos na infância são colocados como prazeres pré-genitais.

Observe-se como é difícil para o homem chegar a esse tipo de prazer. Ele tem que abrir mão dos pais, sofrer mudanças corporais com o desenvolvimento biológico e suportar as adversidades da realidade, que lhe mostra que existe limite para as fantasias.

Essa imposição da realidade não é de todo ruim. Se o bebê não percebesse que ele não pode fazer tudo que deseja, permaneceria no “mundinho” dele todo o tempo. Não existiria um contato com o mundo. É a falta de completude que mostra ao bebê o que é ter dor, sofrer e o que é amar. É no sofrimento que se aprende a amar, ou melhor, é na falta que se aprende a amar. Isso não é uma apologia ao sofrimento, nem se busca, com essas considerações, estimular as pessoas a sofrerem, até porque esse sofrimento que aqui foi explicitado é construtivo e tem um objetivo. Ele é necessário e delimitador da realidade e vem como forma de promover a preservação do ser.

Na caminhada rumo ao desenvolvimento psíquico-emocional, o homem vai crescendo independentemente de lidar bem ou mal com cada fase. O corpo cresce sem pedir permissão ao psiquismo, e o ser humano vai aprendendo a lidar com os prazeres, sofrimentos e sensações da forma que lhe é possível. Para chegar à fase anal, o bebê não tem necessiariamente que ter tido uma excelente resolução e vivência da fase oral. O sucesso, ou não, do desenvolvimento das fases vai depender do que lhe é inato e do aprendizado com os pais. Assim, se lhe falta um dos dois, a criança pode ter dificuldades de chegar à fase adulta com seu desenvolvimento pleno no período genital.

Este trabalho tenta entender o que acontece em determinadas situações em que falta a presença (interna) dos pais ou em que há uma pulsão execessiva, inata, de morte, assim como o que acontece em determinadas situações em que existe uma falha no vínculo com a mãe ou com o pai e as conseqüências para a vida adulta. Busca-se entender o que se conhece hoje em dia como perversões e suas consequências.

3. CONCEITUAÇÃO

[...] talvez pudesse ser dito que a perversão, como a beleza, está no olho do espectador. Não há dúvida de que a principal “zona erógena” da humanidade está localizada na mente (MCDOUGALL, 1997, p. 235).

Assunto polêmico e incômodo nos dias atuais é a perversão. Quando se fala de perversão, sempre se tem uma piada ou surge um rubor no rosto. Essa é a maior prova de que não sabemos lidar, ainda, com o que é diferente e, ao mesmo tempo, tão intrínseco ao homem.

Acabou-se de ver que o homem transita por diversas zonas erógenas até chegar à genital. Bem ou mal, a maioria das pessoas consegue atingir essa fase, mesmo que de forma incompleta. Entretanto, existem pessoas que não chegaram e talvez, sem ajuda da análise, nunca cheguem. São pessoas que buscam prazeres parciais, pois ainda estão na fase pré-genital de desenvolvimento. São pessoas que, por alguma característica em seu desenvolvimento psíquico-emocional, não aprenderam a fazer o vínculo com o outro: não aprenderam a amar. Perversão nada mais é do que isso: a falta do encontro.

Por se distinguir da normalidade, a perversão assusta e é motivo de discriminação e medo. Ferraz define o que é a normalidade no desenvolvimento humano:

Em linguagem psicanalítica, a normalidade implica a integração das fantasias primitivas e as atividades pré-genitais (sádicas, masoquistas, voyeuristas, exibicionistas e fetichistas, próprias da sexualidade infantil perverso-polimorfa) com as atividades genitais. A normalidade implica, ainda, a capacidade de excitação e orgasmo no ato sexual e a possibilidade de um relacionamento terno e amoroso, em que a gratificação emocional seja reassegurada pelo encontro sexual, da qual resulte uma conquista de liberdade psicológica (FERRAZ, 2000, p. 18).

Portanto, a normalidade traz consigo as atividades pré-genitais – como as atividades sádicas, masoquistas, exibicionistas etc. –, que, na infância, são normais. Entretanto, quando colocadas como atividades-fim na vida adulta, passam a ser consideradas desvios sexuais ou perversões. Isso não é fácil de entender porque envolve mecanismos primitivos de ajuste à realidade.

[...] lidar com as perversões [...] [é] lidar com a vida sexual como repleta de significação e não como simplesmente voltada para a mecânica de obter satisfação para as tensões pulsionais; [é] conceber a complexidade das fantasias sexuais que podem estar subjacentes àquilo que, descritivamente, pode ser chamado de um ato sexual comum (MELTZER, 1989, p. 156).

O próprio termo perversão é tido como algo depreciativo, algo degenerativo desde o início da concepção da palavra. Ferraz (2000) aborda, de forma bastante completa, a etimologia do termo e seu histórico:

O termo perversão, que tem origem no latim perversione, designa o ato ou efeito de perverter-se, isto é, tornar-se perverso ou mau, corromper, depravar, desmoralizar. Pode designar ainda a alteração ou transtorno de uma função. Na tradição da medicina, esse termo foi reservado para designar o desvio ou a perturbação de uma função normal, sobretudo no terreno psíquico e, mais propriamente, no terreno da sexualidade. Desse modo, estamos a um passo de deixar o campo asséptico da estatística como crivo para a determinação da norma, e ingressar no campo da moralidade para definir o que é “normal”, portanto “certo” e “desejável”, e o que é “anormal” ou “perverso”, portanto “errado” e “indesejável”. Não se pode menosprezar o fato de que, da mesma raiz de perversão, deriva o termo perversidade, que quer dizer “índole ferina ou ruim” (Ferreira, 1986). Roberto Barberena Graña (1998) acrescenta algumas informações interessantes sobre a etimologia do termo perversão. Segundo esse autor, o latim perversus incluía em sua área semântica significados tais como “posto às avessas”, “contrário à justiça” e “inclinado ao mal”. Já o termo perverto indicava “destruir as leis” ou “profanar as coisas ou cerimoniais sagrados” (p.83). Na Idade Média, apalavra passou a designar os hereges e todos aqueles que abandonavam uma prática religiosa e a divindade, isto é, os detratores de um nome ou de uma instituição. Graña alerta para o fato de que a psicanálise tende a fazer um uso semelhante do termo, deixando-se, de modo perigoso à sua própria essência, influenciar-se por preconceitos e pelo moralismo (FERRAZ, 2000, p. 17-18).

Com o tempo, o termo tornou-se abrangente e hoje, no senso comum, utiliza-se o termo perversão para todo transtorno que se desvie do normal.

O tema perversão é controverso e polêmico porque, além da conceituação clássica de que refere um transtorno que desvia os fins da sexualidade normal, ele também implica, na atualidade, questões morais, éticas, ideológicas e jurídicas. Assim, de acordo com a sua etimologia (a palavra “perversão” deriva de per + vertere, que quer dizer: pôr às avessas, desviar, desvirtuar...), o vocábulo designa o ato o ato de o sujeito perturbar o estado natural das coisas, de modo que, com a sua conduta, oposta à normal, desafia as leis habituais, consciente de que, com os seus atos, ultraja seus pares e a ordem social na qual ele está inserido (ZIMERMAN, 2004, p. 267).

Antes de tentar entender o que acontece na perversão, é importante distinguir perversão de perversidade. Embora os dois termos tenham a mesma origem, têm significados distintos e nem todo perverso possui perversidade.

[A] distinção entre perversão e perversidade: o primeiro alude a uma estrutura que se organiza como defesa contra angústias persecutórias, depressivas e, especialmente, de desamparo, enquanto a outra refere-se a um caráter de crueldade e de malignidade. Assim, na perversão, o sujeito não busca primariamente a sensualidade; antes, essa se comporta como uma válvula de escape para ele provar para os outros, e para si mesmo, que superou as angústias mencionadas (ZIMERMAN, 2004, p. 267).

Mais do que pessoas com desvios de conduta, os perversos são pessoas com um sofrimento intenso e primitivo. Sofrem da ausência de existência.

Estamos frente a pessoas cujas experiências, além de qualquer patologia que possam manifestar, tiveram relação com o ter de ser inexistentes para poder ser, senão amados, ao menos aceitos por pais que odiavam a vida e por ela eram aterrorizados. [...] não lhes foi concedido existir como pessoas individualizadas, mas somente como apêndices de algum outro, contra sua própria vontade. As suas necessidades de base foram, portanto, ignoradas e não receberam uma real tutela e cuidado (MARQUES, 2007, p. 164).

Este trabalho irá abordar a perversão como um funcionamento psico-afetivo e não como algo estruturado. Adiante, serão observadas essas duas formas da perversão, mas com um olhar que parte do entendimento de que esse perverso está perverso, mas não é perverso. A perversão surge no momento da vinculação com os pais. É um desvio causado pela ausência de amor e doação.

As manobras perversas visam a evasão, exclusão e substituição das experiências, por meio das quais a notação da falta e da precariedade da existência tornam-se inevitáveis, impossibilitando sua significação. Porém tal situação por si só não se constitui como uma ação perversa, já que são movimentos comuns às transformações em alucinose já descritas por Bion (1991). O que possivelmente nos aproxima um pouco mais do conceito de perversão é a “organização”, isto é, a articulação sofisticada de elementos degradados que se prestam à evacuação e que se aglutinam por compressão e não por elos de significação e que, por sua vez, apresentam-se como uma fachada falsamente refinada no lugar de um pensamento (MARQUES, 2007, p. 158).

4. FREUD E A COMPREENSÃO DA PERVERSÃO

O estudo da perversão permeou os trabalhos que Freud realizou por toda a vida. Partindo, inicialmente, de um modelo de dinamismo psíquico, Freud, através do estudo das pulsões, procura entender a perversão como um desvio da finalidade dessas pulsões. É importante, então, entender o que ele conceitua como pulsão, que é diferente de instinto (algo do biológico), e o que são seus objetos.

O instinto é geralmente conceituado como um padrão de comportamento inato, com uma finalidade biológica adaptativa e invariante tanto no indivíduo quanto dentro de uma mesma espécie (Laplanche, 1993). [...] Freud (1905) procurou deixar evidente a peculiar e marcante contingencialidade daquilo que conceituou como o objeto (a pessoa ou coisa a quem se dirige a atração) e a meta (o ato a que a atração conduz) da sexualidade humana. [...] Tal contingencialidade de objeto e meta diferencia a sexualidade humana de um simples instinto e, por essa razão, Freud a caracteriza como uma pulsão (trieb, em alemão), cuja essência é mais o aspecto irreprimível de uma pressão por prazer do que a fixidez da meta e do objeto (HARTKE, 2005, p. 658).

Janine Chasseguet-Smirgel foi quem melhor estudou as perversões na obra freudiana, e, segundo essa autora, na qual este trabalho se baseia, o estudo das perversões na obra de Freud passa por três fases.

[...] Janine Chasseguet-Smirgel, para quem há três momentos da concepção perversa na obra de Freud, os quais não são excludentes mas complementares, como bem acentua o autor. O primeiro, aquele da neurose como negativo da perversão. O segundo, mediado pelo complexo de Édipo e pelas equações simbólicas que dele advêm, a ponto de se poder pensar, pela primeira vez, na estranheza da estreita relação entre o erótico e terrorífico das perversões. Finalmente, o terceiro momento remete a alguns artigos da década de 20 e culmina com Fetichismo, de 1927; aí a recusa (Verleugnung) da castração e a divisão do ego roubam a cena e trazem conseqüências tanto para a perversão como para sua irmã gêmea, a psicose (FERRAZ, 2000, p. 9).

4.1 Fases do desenvolvimento da teoria freudiana da perversão

Freud foi construindo seu estudo do desenvolvimento humano em artigos que publicou ao longo da vida, cuja leitura nos permite trilhar os caminhos de seus pensamentos. Entretanto, no que tange ao estudo das perversões, existem três que demarcam pensamentos crescentes. Os títulos desses artigos são apresentados nos tópicos a seguir, mas vale ressaltar que eles são marcos, e que as ideias que perpassam os três momentos a seguir descritos são construções de vários de seus textos. Por ora, os demais textos não serão explicitados, visto que o objetivo é permitir uma compreensão de como Freud chegou ao conceito de perversão utilizado, hoje, na clínica.

4.1.1 Primeiro momento: “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905)

Freud tem duas definições para as perversões em 1905: “As perversões são ou (a) transgressões anatômicas quanto às regiões do corpo destinadas à união sexual, ou (b) demoras nas relações intermediárias com o objeto sexual, que normalmente seriam atravessadas com rapidez a caminho do alvo sexual final” (FREUD [1905], 1996, p. 142).

Desde 1905, Freud já percebia que o que existe nas perversões também existe na vida cotidiana e que pessoas normais podem, em alguns momentos, desenvolver aspectos perversos. Com isso, o que parece extremamente patológico deve ser revisto como algo intrínseco ao ser humano.

A experiência cotidiana mostrou que a maioria dessas transgressões, no mínimo as menos graves dentre elas, são um componente que raramente falta na vida sexual das pessoas sadias e que é por elas julgado como qualquer outra intimidade. Quando as circunstâncias são favoráveis, também as pessoas normais podem substituir durante um bom tempo o alvo sexual normal por uma dessas perversões, ou arranjar-lhe um lugar ao lado dele (FREUD [1905], 1996, p. 152).

Como visto anteriormente, nesse primeiro período do estudo freudiano das perversões e do desenvolvimento sexual, o desenvolvimento do homem é diferenciado em pré-genital e genital. O que não foi colocado ainda é que existe um movimento de integração da personalidade que Freud chamou de narcisismo.

Paralelamente ao desenvolvimento sexual (psíquico-emocional), a libido ou pulsão sexual vai de um movimento autoerótico para um movimento de relações com o outro, ou relações objetais. Outra diferenciação entre o desenvolvimento pré-genital e o genital é o destino dessa libido. A libido do período pré-genital é voltada para o próprio corpo. Ora, se o bebê começa a se descobrir, sua libido está nele, é autoerótica. Vale lembrar que nessa fase ele está vinculado à mãe e ainda não entrou no Complexo de Édipo e no medo da castração. Para ele, tudo é permitido. Isso é importante para a construção e a integração de sua identidade. O bebê vai se percebendo e se sentindo e, assim, se integrando.

Quando ele chega ao Édipo, vai redescobrir o mundo e começa a se relacionar com tudo aquilo que não é ele. Freud chama tudo que não é ego (ou eu), ou seja, o outro, de objeto. Assim, a libido deixa de ser narcísica, voltada para si, e evolui para as relações objetais. Seus investimentos pulsionais passam a ser colocados no externo, no mundo.

Freud, tal como Abraham, concebia o desenvolvimento da personalidade em termos de uma série de organizações pensadas, nesse momento [1905], como pré-genitais e genitais. A organização pré-genital já era concebida como tendo diferentes fases: oral e anal sádica (como já propunha Abraham) e oral e anal erótica, mas a divisão principal dava-se entre pré-genitais e genital. O pré-genital também era encarado como o domínio “por excelência” do narcisismo – esse último sendo concebido basicamente nos seguintes termos da libido: narcisismo como um estágio do desenvolvimento da evolução da libido, do autoerotismo para as relações objetais, no qual o corpo é tomado como objeto dos impulsos libidinais. Desenvolvimento que evolui para as relações objetais nas quais os corpos de outras pessoas são escolhidos como objetos dos impulsos libidinais – isto é, principalmente sexuais (MELTZER, 1989, p.150).

O que marca a presente fase é que nela Freud propõe que a “neurose é o negativo da perversão”, pois o neurótico aceita entrar no Édipo e, consequentemente, no período genital, enquanto que o perverso o nega, recusa-se a entrar na castração e permanece (fixação) em um estado anterior e pré-genital.

A teoria da sexualidade e das perversões vai sendo desenvolvida até 1919, quando Freud acrescenta uma nova descoberta ao surgimento da perversão no artigo “Uma criança é espancada: uma contribuição ao estudo da origem das perversões”.

4.1.2 Segundo momento: “Uma criança é espancada” (1919)

Freud afirma a normalidade das perversões na infância e busca explicar o que acontece para que esse modo de funcionamento mental persista na idade adulta.

Uma perversão na infância, como é sabido, pode tornar-se a base para a construção de uma perversão que tenha um sentido similar e que persista por toda a vida, uma perversão que consuma toda a vida sexual do sujeito. Por outro lado, a perversão pode ser interrompida e permanecer ao fundo de um desenvolvimento sexual normal, do qual, no entanto, continua a retirar uma determinada quantidade de energia (FREUD [1919], 1996, p. 207).

Freud vai aprofundar o estudo das perversões, nessa segunda fase, observando-a como vinculada ao Complexo de Édipo e ao medo da castração. Enquanto no momento anterior o olhar era mais voltado para a pré-genitalidade e a genitalidade, agora Freud vai abordar a perversão como algo que vincula o prazer ao erótico, algo que tem a ver com problemas na triangulação edípica (pai, mãe e bebê). Segundo Hartke (2005, p. 658), o organizador nuclear central é o Complexo de Édipo e orienta-se em torno da diferença entre os sexos e as gerações, com o primado da genitalidade, e o organizador nuclear correlato é o complexo de castração.

Ele parte do estudo de fantasias de espancamento, tanto em meninas como em meninos, ligadas à origem do sadismo e do masoquismo, vinculadas ao Complexo de Édipo e de castração e, por consequência, sofrendo influência do trabalho da repressão.

Freud (1919) afirma que, na mulher, existem três fases das fantasias de espancamento. Na primeira, a menina acredita que o pai bate em uma criança e, por conta disso, surgem os pensamentos sádicos. Na segunda, a criança que apanha é ela, o que dá origem ao masoquismo. Ou seja, a criança associa o “bater” do pai às manifestações de afeto e aparece o prazer de apanhar. Na terceira fase, o pai é substituído por um outro agressor, e a menina deixa de ser a criança que apanha. A criança volta a ser outra que não ela. A fantasia dessa cena impõe à menina um sentimento de culpa e transforma o sadismo em masoquismo.

No desenvolvimento normal, Freud (1919) expõe que, para fugir de seus sentimentos eróticos em relação ao pai, na terceira fase, ela substitui o pai agressor por outra pessoa e a criança amada e agredida por outra do outro sexo. Sobre as fantasias dos meninos, Freud afirma que eles não possuem o que equivale à primeira fase das meninas. As fantasias começam com o pai os agredindo, equivalendo à segunda fase das meninas. Posterior e normalmente, na terceira fase dos meninos, é a mãe que bate em alguém que não é ele. Isso é importante, segundo Freud, para que ele possa escapar da homossexualidade, pois nessas fantasias bater e amar são equivalentes.

A perversão é ligada ao Édipo e deve ter nele sua origem, ou pelo menos seu desencadeamento. Observe-se a formulação de Freud (1919) sobre o Édipo, as neuroses e as perversões:

Se, no entanto, a derivação das perversões a partir do complexo de Édipo pode ser estabelecida de modo geral, a nossa estimativa quanto à sua importância terá adquirido força adicional. Porque, na nossa opinião, o complexo de Édipo é o verdadeiro núcleo das neuroses e a sexualidade infantil que culmina nesse complexo é que determina realmente as neuroses. O que resta do complexo no inconsciente representa a inclinação para o posterior desenvolvimento de neuroses no adulto. Dessa forma, a fantasia de espancamento e outras fixações perversas análogas também seriam apenas resíduos do complexo de Édipo, cicatrizes, por assim dizer, deixadas pelo processo que terminou, tal como o notório 'sentimento de inferioridade' corresponde a uma cicatriz narcísica do mesmo tipo (FREUD [1919], 1996, p. 208).

Assim, devido à abordagem freudiana do Édipo, é interessante relembrar como ocorre o cenário incestuoso edípico.

4.1.2.1 A montagem do cenário incestuoso

Hartke (2005) apresenta de forma bem sucinta o Complexo de Édipo freudiano:

O acesso à genitalidade e a escolha do objeto sexual na vida adulta dependem fundamentalmente da adequada superação desse complexo [Édipo]. Na sua forma positiva, refere-se ao desejo sexual pelo genitor do sexo oposto e à rivalidade assassina pelo do mesmo sexo. Na negativa, isto é, no Édipo invertido, envolve o desejo erótico pelo genitor do mesmo sexo e o ódio rival ao do outro sexo. Seu apogeu ocorre entre 3 e 5 anos de idade, em uma fase do desenvolvimento sexual na qual, para Freud, ambos os sexos reconhecem apenas um órgão sexual, isto é, o pênis. Nos meninos, o temor à castração por parte do pai leva à sua dissolução, deixando como resultado um período de latência sexual, bem como a formação do superego, devido à introjeção da autoridade paterna. As meninas, ao constatarem a distinção anatômica entre os sexos, passam a invejar o pênis, culpam a mãe por não lhes haver dado um e passam a desprezá-la por ser também castrada. Abandonam, então, o desejo de ter um pênis e o substituem pelo desejo de um filho. Com esse objetivo, procuram o pai como objeto de amor, passando a sentir ciúmes em relação à mãe e iniciando, assim, o complexo de Édipo positivo (HARTKE, 2005, p. 658).

O Édipo invertido, segundo Hartke, é o que levará à homossexualidade. Aqui, é importante fazer uma pausa para enfatizar que a orientação sexual, por si só, não permite a classificação como perversão, e o próprio Freud (1905) ora se refere à perversão como patologia, ora se abstém de classificá-la, colocando-a como uma fixação em um estágio anterior do desenvolvimento sexual devido ao desenvolvimento desse período num momento não adequado. No texto “Uma criança é espancada”, Freud enfatiza essa fixação da libido no desenvolvimento infantil:

Uma fantasia dessa natureza, nascida, talvez, de causas acidentais na primitiva infância, e retida com o propósito de satisfação auto-erótica, só pode, à luz do nosso conhecimento atual, ser considerada como um traço primário de perversão. Um dos componentes da função sexual desenvolveu-se, ao que parece, à frente do resto, tornou-se prematuramente independente, sofreu uma fixação, sendo por isso afastadas dos processos posteriores de desenvolvimento, e, dessa forma, dá evidência de uma constituição peculiar e anormal no indivíduo. Sabemos que uma perversão infantil desse tipo não persiste necessariamente por toda a vida; mais tarde pode ser submetida à repressão, substituída por uma formação reativa ou transformada por meio da sublimação (FREUD [1919], 1996, p. 197).

Nesse segundo momento freudiano, a perversão tem origem em uma mãe incapaz de permitir o desenvolvimento do bebê, fazendo-lhe exigências exageradas e não condizentes com sua idade e desenvolvimento mental, ou tratando-o como um ser indiferenciado dela.

Ferraz [2000, p.72], citando Maksud Khan, nos diz que a mãe do perverso, “tendo um baixo grau de tolerância ante a frustração de seu filho, permite-lhe um infantilismo nas experiências corporais libidinais incongruente com o desenvolvimento das funções egóicas que dele exige”. Acrescenta que a instabilidade da mãe, “que tende a alternar exigências traumatizantes com atitudes excessivamente indulgentes, favorece a dissociação egóica e dificulta o desenvolvimento emocional, o que contribui para o engendramento de um adulto com traços infantis de personalidade” (FRANÇA, 2005, p. 35).

Nessa situação, o pai é excluído da triangulação, e o bebê, que deveria entrar em contato com o mundo, acaba funcionando somente numa relação dual mãe-bebê. Em um exemplo clínico, França (2005, p. 36) cita o comportamento da mãe de um perverso em relação ao pai: “No discurso da mãe não havia lugar para o pai, ela fazia de tudo para não deixar o filho sentir a falta dele: até organizava programas em que os outros pais também não pudessem comparecer”. O problema é que uma mãe instável, ora exigindo em demasia, ora relegando o bebê, deixa-o confuso, e sua necessidade de acolhimento e atenção torna-se maior.

Afirmou Pellegrino [1987, p. 310]: “Quanto pior for esta relação, quanto menos se sentir a criança amada e protegida pela figura materna, mais se agarrará a ela, e mais devastadoras serão as paixões desencadeadas na etapa posterior”. Mas, se ao contrário, “a relação for boa e amorosa, mais facilidade terá a criança de aceitar o corte separador que, com a interdição do incesto, a afasta da mãe” (FRANÇA, 2005 p.37).

Assim, ao invés de promover a individuação, a mãe acaba por dificultar o corte separador entre ela e o bebê. Isso leva à permanência do incesto[1].

Se não existe a intervenção do pai e a mãe não permite a entrada do bebê na realidade ou no mundo, o bebê continua acreditando ser completo, ou seja, ele não é e nem será castrado. Ele nega que isso possa ocorrer algum dia, e aquilo que cria o sintoma no neurótico, ou seja, o medo de ser castrado, é negado e torna-se inexistente para o perverso.

Se o perverso nega que é castrado, ele necessita de um objeto para completar a parte que lhe falta. Quando Freud percebe isso, entra no terceiro momento de sua teoria das perversões, formulando o objeto fetiche do perverso.

4.1.3 Terceiro momento: “Fetichismo” (1927)

Se o perverso nega a castração, ele não pode ou não é castrado e sua mãe também não pode ser. Assim, Freud (1927) deduz que tem que existir algo, observado nas fantasias de alguns tipos de perversão, que suprima a castração. Esse algo é o que ele chama de objeto fetiche e é simbolizado por alguma parte do corpo ou objeto que possa completar a mulher naquilo que lhe falta.

Ao enunciar agora que o fetiche é um substituto para o pênis, decerto criarei um desapontamento, de maneira que me apresso a acrescentar que não é um substituto para qualquer pênis ocasional, e sim para um pênis específico e muito especial, que foi extremamente importante na primeira infância, mas posteriormente perdido. Isso equivale a dizer que normalmente deveria ter sido abandonado; o fetiche, porém, se destina exatamente a preservá-lo da extinção. Para expressá-lo de modo mais simples: o fetiche é um substituto do pênis da mulher (da mãe) em que o menininho outrora acreditou e que – por razões que nos são familiares – não deseja abandonar (FREUD [1927], 1996, p.155).

Para Freud (1927), o fetiche é um triunfo sobre a castração. É uma forma de o ego lidar com a realidade, diferente da neurose, em que o ego reprime um fragmento do id, e da psicose, em que o ego deixa-se induzir pelo id a se desligar de um fragmento da realidade. Na perversão observada por Freud em sua clínica, além de uma recusa da castração, existe uma cisão do ego. Essa cisão faz com que a pessoa permaneça na realidade em seus outros aspectos não sexuais, mas perverta a realidade da castração através de fantasias substitutivas do falo (pênis) que falta.

Etchegoyen (1989, p.99) afirma que “Freud vislumbrou, em 1922, que a perversão pode ter que ver com impulsos agressivos e não só libidinosos e, em seu ensaio sobre o fetichismo [...], assinala nesses enfermos uma forma peculiar de conformar-se à realidade”.

Esse modelo de se conformar com a realidade traz outra característica do fetiche: ele é amado e odiado de forma paralela. Está em cena a ambiguidade de sentimentos devido a impulsos agressivos e sexuais. Isso ocorre porque o fetiche é e não é a representação da castração. Ao mesmo tempo que ele simboliza o falo, mostra ao perverso que ele não o tem, que ele é castrado (FREUD, [1927] 1996). Esse pensamento ambíguo de ser e não-ser ao mesmo tempo permite concluir, entre outras coisas, que a perversão estaria mais próxima da psicose do que da neurose, visto que se perde uma parte da realidade no funcionamento perverso.

Assim, pode-se concluir, ao final dos estudos da obra de Freud, que o perverso tem problemas de vinculação com sua mãe, distorção do objetivo e da meta de seus impulsos, negação da castração, cisão do ego e que está mais próximo do psicótico do que do neurótico. Mas o estudo das perversões não se encerrou por aí. Outros autores pós-freudianos continuaram a pesquisar, em suas clínicas, o que ocorre com o funcionamento dito perverso e, desses estudos, segundo Chasseguet-Smirgel citado por Ferraz (2005b), encontramos duas vertentes. É o que será abordado a partir de agora.

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