O Fazer Analítico - Notas Introdutórias ao Congresso

11/04/2014

O Fazer Analítico

Notas Introdutórias ao Congresso .

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“Quando a loucura obscurece completamente o pensamento, é possível, às vezes, uma recuperação, na medida em que o sujeito for capaz de reencontrar os traços de sua linguagem. Acredito seja possível considerar estes traços – o mito – como o único aspecto pessoal que sobreviveu à catástrofe” (Ferrari, 2005).

Com este título, “O fazer analítico”, gostaríamos de chamar a atenção sobre alguns aspectos que tornam a Relação Analítica algo diferente de qualquer outra relação humana, daquela que, com Ferrari, poderíamos definir a Relação Comum (1987) e, mais precisamente, sobre alguns aspectos fundamentais presentes em nosso cotidiano operar em campo clínico.

A atenção, portanto, é dirigida principalmente para alguns conceitos básicos do pensamento psicanalítico desde suas origens e que, através de mais de cem anos de prática e pesquisa teórico-clínica, foram se transformando, inclusive em relação aos progressos no campo de outras ciências que se ocupam do homem, como a filosofia, a biologia, as neurociências etc.

Muitas são as questões clínicas e teóricas derivantes, muitas as dúvidas, as questões ainda não resolvidas, as áreas que se abrem a ulteriores aprofundamentos.

Como considerar, hoje, no contexto da relação analítica, a relação entre fisicidade, corporeidade, psiquicidade? Entre sensações, emoções e pensamento?

Como pode a palavra adquirir funções transformadoras no decorrer daquele diálogo tão peculiar que é o diálogo analítico? É palavra que informa ou que transforma? Que descreve ou que promove experiência? É somente abstração e símbolo ou é também corporeidade?

"A palavra, de que o mito é também a fonte (...) não apenas é capaz de “nomear” a realidade, mas também de se colocar, enquanto a define, como a própria realidade. (…). Na linguagem metafórica (...) torna-se evocatória de forças incontroláveis e assume uma força e uma intensidade tão poderosas a ponto de se tornar até mesmo perigosa. Magia do signo, do som e da forma” (Ferrari, 2005).

Ferrari propõe a hipótese que, na passagem da corporeidade à psiquicidade, no complexo percurso que fundamenta a identidade de cada um, ao lado do contínuo acrescer e transformar-se da configuração egoica, contemporaneamente se possa constituir no indivíduo "uma espécie de núcleo, uma forma de condensação, em que a dimensão mítica assume a consistência de algo autônomo em relação a seu criador, capaz de viver com leis e normas próprias". Um mito pessoal (assim o define) presente no contexto da relação analítica em forma muda e de que se podem "colher os traços nos registros de linguagem onírica, na constelação edípica, na configuração egoica e nas percepções que (...) quase sem o direito interessado saber, desvendam estados emocionais, sentimentos, recursos potenciais no mundo interno do analisando".

A hipótese que Ferrari tece acerca de “o mito pessoal” é que este constitui um núcleo, uma marca pessoal e original, que pode, em alguns casos, permitir superar as trevas da loucura, “lançando mão de algo que dá luz ao pensamento. (...) Põe-se como matriz da psiquicidade e impregna a corporeidade, gerando o que chamei "a mente do corpo" (Ferrari, 1992).

Então, a função do que, com Ferrari, chamamos de mito pessoal e que se coloca na relação que cada um tem consigo mesmo, que tipo de relação pode estabelecer com a função que o mito constituiu na história da humanidade?

Como considerar, então, o mito de Édipo, o cenário edípico no contexto da relação analítica?

E como se transforma o uso dos conceitos de consciente e inconsciente neste contexto, também graças ao aporte das mais recentes descobertas em campo neuro-científico?

Podemos ainda considerar a relação analítica como contexto em que tornar consciente o inconsciente? Ou talvez, associando-nos às palavras da Dra. Márcia Câmara, não se trataria de “tornar consciente o consciente"?

Eis a questão da responsabilidade: trata-se de solicitar no analisando a consciência e a responsabilidade para aquelas teorias implícitas que, sem que ele o saiba plenamente, estão por baixo de suas escolhas e de suas orientações de forma disfuncional. No contexto da relação analítica, quem é responsável pelo quê? Cabe ao analista reconhecer e respeitar a competência do analisando acerca de si mesmo: é somente o interessado que sabe de si mesmo, embora, por razões diversas, tenha esquecido de saber. É preciso mostrar-lhe que foi ele a construir o labirinto no qual agora está perdido, que ele conhece a chave resolutiva, mesmo se, por enquanto, perdeu esta chave. Cabe ao analista ajudá-lo a reencontrá-la. Chave que reside na maneira peculiar com que cada um de nós declina a relação entre a própria corporeidade e a própria psiquicidade. Responsabilidade para consigo mesmo, então, para com as próprias teorias, as próprias emoções e sensação, para o próprio corpo. “A voz do corpo provém do começo dos tempos e a sua autoridade provém de uma longa experiência. (...) e se a mente não dá ouvidos, o corpo mandará sinais cada vez mais fortes para se fazer ouvir”. Isto escreve a Dra. Powar, que, especialista em ciências da alimentação, chega, mediante sua prática clínica, à mesma conclusão: se o sujeito não assumir a responsabilidade por si mesmo, pelo seu corpo e pela sua mente, o inteiro sistema entra numa situação marasmática.

E como considerar o conceito de responsabilidade na relação analítica? Podemos considerá-lo no sentido de algo que, mesmo originariamente confundido com o sentimento de culpa, deve, sucessivamente, no decorrer da experiência analítica, alforriar-se dele para fundar o sentimento de uma responsável liberdade de ser aquilo que se é, por parte do analisando, e de uma responsável liberdade das próprias escolhas e orientações clínicas por parte do analista? E de que forma estes princípios se podem declinar no contexto de relações analíticas com crianças e adolescentes? Ou também com analisandos adultos em condições de profunda desarmonia psicofísica?

Gostaríamos de levantar uma discussão e uma troca sobre estas temáticas, sobre este “fazer analítico” entre profissionais que partem de diversas perspectivas epistemológicas, com o objetivo de refletir sobre a nossa prática clínica.

Certamente, a solidão é uma condição não eliminável do ser humano, pelo fato de ser, ele, mente que nasce do corpo e, portanto, perceber o mundo, o outro e a si mesmo de forma única, original e incomunicável, mas consideramos também a fundamental função que o outro reveste enquanto catalisador dos próprios pessoais recursos emocionais e de pensamento.

Poder encontrar outros colegas, outras perspectivas, outras maneiras de trabalhar é o que torna, a nosso ver, um congresso uma experiência única e não repetível e constitui a ocasião para precisar melhor novas áreas a serem investigadas no campo do funcionamento mental e da relação entre corporeidade e psiquicidade.

Para isso, como já é nosso hábito, as relações não serão lidas durante os trabalhos, mas serão enviadas aos inscritos que, desta forma, poderão participar ativamente da discussão. De fato, é característica desses encontros a promoção de um clima de estudo e pesquisa, que favoreça e estimule a participação ativa dos presentes.

Fausta Romano

Psicóloga / Psicoterapeuta

Sócia-fundadora e Presidente do Instituto Psicanalítico de Formação e Pesquisa Armando B. Ferrari

Roma – Itália

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data de publicação: 11/04/2014