Tempos mudados

21/11/2019

 

Lendo um texto de psicanálise há algum tempo atrás me intrigou a seguinte pergunta: - O que muda em nós quando muda o mundo?

Nos tempos recentes da história da humanidade quando os valores, a família, a hierarquia, as fronteiras geográficas, as fronteiras dos padrões de comportamento dissolveram-se e continuam nesse processo, o mundo contemporâneo nos apresenta um terreno diferente, mais amplo e ouso dizer também mais confuso e repleto de outras diferentes possibilidades, por isso mesmo provocando mudanças na nossa maneira de ser, de viver e de nos relacionar. Acredito que essas novas configurações tem transformado a maneira de sofrer. Mudou nossa relação com o tempo, com o espaço e com o conhecimento. Hoje não existe longe e não existe depois. Para o homem atual mudou a forma de entender e viver, assim como mudou o seu vínculo afetivo.

Quem é o humano agora, o que ele quer e o que ele precisa? O “ser ou não ser” de Shakespeare ainda é um dilema ou o dilema agora é “ter ou não ter”?

Atentando ao ser humano, a subjetividade ainda tem lugar no contexto da vida contemporânea? Penso que ocorreu um “stop” onde não se pode mais pensar no sujeito da interioridade falando consigo mesmo. O mundo mudou de forma radical e a uma velocidade imensa, relembrando as palavras de Zigmunt Bauman.

Como seria o modelo do homem na contemporaneidade? As imensuráveis mudanças tecnicológicas, a clonagem, o imediatismo, a indústria do descartável, a relação com o tempo, a ideia de saudades, de amor e de vínculo, as relações com o outro e consigo mesmo estão diferentes, mas, mesmo assim e talvez por isso, não conseguimos ter a capacidade de ficarmos sós, que é diferente de estarmos sós.

O ser humano nasce, vive, morre e tem a história da sua vida. É implícita sua subjetividade que sinto estar sendo negligenciada. A subjetividade é o espaço íntimo do indivíduo, é aquilo que conversa secretamente consigo e também é composta dos personagens interiorizados que ouvem a si mesmos e que ouvem os outros, sendo por isso conflituados e culpados. Mas o fato da subjetividade referir-se àquilo que é único e singular do sujeito não significa que sua gênese seja apenas do interior do indivíduo.

A gênese dessa parcialidade está justamente nas relações sociais do homem, isto é, quando ele se apropria (ou subjetiva) das tais relações de forma única e só sua. Interpreto que o desenvolvimento da subjetividade ocorre pelo intercâmbio contínuo entre o interno e o externo e isso pode fazer, ou não, o indivíduo crescer psiquicamente devido às alterações interiores e quando ele se dá conta, ou não, do desenvolvimento da capacidade de pensar e perceber que pode auto recriar-se.

A quem temo, a mim mesmo? Devo fugir de quem, de mim? Qual a razão?

Se cada época determina suas formas de sofrer, os males que nos atormentam hoje estão evidentes na sensação de abandono, de vazio, de abismo e de frustração. E o homem psiquicamente doente da época atual defende-se muitas vezes com relações de fusão ou ódio, predominando arrogância, falta de empatia, inveja, grandiosidade e presunção.

Freud fala “vossa majestade o bebê”, quando o recém chegado é investido pelas figuras parentais idealizando-o com frases grandiosas, narcísicas e projetando no filho o que eles não conseguiram da vida. Desejam que ele passe pelos espinhos sem ferimentos, sem que nada lhe aconteça. Isso criaria a inicial necessária e temporária onipotência narcísica no bebê, onde ele pode tudo, onde ele é perfeito, onde ele vai ser inventado e sonhado. É também o narcisismo dos pais renascido. Mas isso não acontece nunca pois mais cedo ou mais tarde a realidade se impõe. Em muitos de nós essa necessidade de ser reconhecido e confirmado persiste como no início da vida e essa necessidade ainda continua sendo maior que o existir. É preciso confirmar a própria existência pelo olhar do outro.

O olhar do outro, o que eu posso suscitar no outro e como o outro me vê é fundamental. Isso é o que eu sou. E essa coisa é o avesso da interioridade pois o eu passou a estar fora baseado na fantasia de que existe alguém que sabe e afirma o que sou. Não tenho eco para rebater, não tenho recursos internos para olhar o que vem de fora a fim de pensar a respeito.

Na vida, no consultório com meus pacientes, tenho pensado que a fonte de depressão e de angustia é que tudo está fora. É como se precisasse reafirmar a existência, como se precisasse de provas para existir. Se a pessoa não é a prova para si mesma que existe, ela precisa de provas. Pode ser malhar até a exaustão, pode ser o céu, pode ser alimentar o olhar do outro como se o outro soubesse que ela realmente está viva, pode até recriar sentimentos passageiros de felicidade narcísica recorrendo às drogas, sexo sem medida ou comprando produtos de luxo.

No imediatismo da modernidade, no deslocamento para fora de si esquece-se das próprias emoções. O que é amar e o que é tristeza algum computador resolve? Parecer ou não parecer, eis a questão? Sem a Estrela do Norte para nos guiar o resultado é a incapacidade de lidar com os próprios sentimentos e a crescente epidemia de depressão em 2020 a 2022 será a segunda doença do homo sapiens segundo estudos prospectivos.

Hoje não se precisa saber, tem o Google que sabe tudo. Tudo está fora, tudo passa pelo olhar e pela imagem. O personagem antes preocupado com o que ele é passou a ser o personagem preocupado com o que ele tem ou imagina que tem e essa imagem é que vai dizer quem ele é. Percebo com muita frequência que não existe narrativa sobre as próprias emoções. É preciso hoje em dia cessar alguma tristeza o mais rápido possível mediante o uso de algum medicamento ou adicção. São pessoas cada vez mais dependentes do olhar do outro, cada vez mais aprisionadas em si mesmas e cada vez mais sozinhas. Quem está faltando para preencher esse vazio?

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Aldo Christiano Médico pediatra, psicoterapeuta na linha analítica, analista em formação pela SPR, Membro do Núcleo Psicanalítico de Aracaju.

Coordenação: Danilo Goulart