Tecendo conhecimento

29/04/2019

 

Tecendo a manhã

João Cabral de Melo Neto

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

(In: A educação pela pedra)

Ao pensar sobre o processo de construção do conhecimento, lembrei-me do poema de João Cabral de Melo Neto, consagrado poeta da geração de 45, que propunha uma nova forma do fazer poético.

Acredito que o ato de tecer a manhã pode ser comparado com o ato tecer conhecimento: o indivíduo sozinho não constrói conhecimento, não promove transformação. Ele precisará sempre de outros indivíduos. De um (professor) que apanhe esse conhecimento apreendido e o lance a outro (aluno); de um outro (aluno) que apanhe o que foi construído de um indivíduo antes (professor) e o lance a outro; e de outros que, com muitos outros indivíduos, se cruzem o fio de sol de seus conhecimentos, para que o saber, desde uma teia tênue, vá se desenvolvendo entre todos, e se encorpando em tela, entre todos, no toldo (na consciência) que plena livre de armação, o conhecimento construído, se eleva por si: apreensão e transformação.

É inegável que o homem é um ser dotado de inteligência, mas para que essa capacidade criativa possa ser desenvolvida, ele precisará de estímulos internos e externos, que possibilitem inquietações, dúvidas, desconforto e, consequentemente, curiosidade. À medida que desperta e aguça a sua curiosidade, abre-se para novos conhecimentos e, com isso, amplia a sua capacidade de apreensão. Se não há estímulos, não há interesse, não há movimento de busca. Este deve ser o papel da escola: libertação e criação.

Se partimos da premissa de que todo indivíduo é único na sua constituição e que cada um responde às adversidades da vida de acordo com o seu referencial, por que se aplica a mesma forma de transmissão do conhecimento para todos? Por que o resultado esperado é sempre o mesmo? Será que precisamos seguir a mesma cartilha? Não somos capazes de enxergar algo além do que foi possível enxergar até então? Penso que a ausência de conflitos é celebrada como virtude e a tensão criadora como arrogância. É lamentável, uma vez que o resultado obtido, na maioria das instituições, é de indivíduos que continuam na ignorância e se veem capacitados, já que apresentam habilidades de leitura, reproduzem, com exatidão, o discurso do outro (do suposto saber), mas que se mostram incapazes de pensar no seu papel dentro do processo de criação. Não há questionamentos, não há contradição. O que há é o silêncio da sua curiosidade e a submissão ao que ficou estabelecido como verdade. Permanecem fazendo uso do que lhes foi ensinado de forma fragmentada, o que deveria ser feito de forma integrada. Assim, questiono-me: será que houve de fato apreensão desse conhecimento? É possível, então, que haja transformação? Certamente que não. A mudança exige apreensão do conhecimento, atitude, coragem e ousadia.

Quando leio os versos do poema de Cabral, em que dizem que “ele precisará sempre de outros galos./ De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro/ de um outro galo/ que apanhe o grito de um galo antes e o lance a outro”, imagino que esse outro (mestre) é aquele que desenvolveu, ao longo da sua experiência, a capacidade de observar e de perceber no outro (aprendiz) algo que já existe dentro dele, mas que necessita ser potencializado, fazendo com que o outro (aluno) se perceba nessa teia e, através do fio do conhecimento, eleve-se por si só, transformando-se em luz, balão.

Vânia Maria Rocha Santos

Psicóloga CRP 19/3242

Licenciada em Letras

Aluna do Curso de Psicoterapia do NPA

Coordenação: Danilo Goulart