Sobre o amargor

13/02/2019

Este é o primeiro texto que escrevo em 2019. Não foi pelas férias, recesso, verão, preguiça, mas por uma certa resistência amarga, poderia dizer. Não é figura de linguagem, posso garantir. É um amargor na boca, nos olhos, nos aromas, na pele, nos ouvidos, nos sentidos. Não é também porque exija elaboração e este texto esteja elaborado. Não, não está.

Observei (e isto é muito pessoal, claro, como tudo que observamos) que o último Natal foi um pouco diferente. Também senti o mesmo com o Réveillon. As festas foram comemoradas, festejadas, mas a impressão que tinha não era da mesma espontaneidade, mas de um ritual que precisava ser cumprido. E foi.

Escrevi uma mensagem de Ano Novo e enviei para familiares e amigos. Nela dizia que 2018 não havia sido um ano fácil, nenhum deles é, na verdade. Mas que havia sido um ano particularmente difícil, sobretudo porque pudemos ver tão claramente o quanto ainda precisamos crescer, nos desenvolver, evoluir. O quanto a espécie humana está distante dos nossos sonhos de paz e harmonia entre as pessoas e com a natureza da qual somos parte (des) integrada. Que foi o ano da intolerância revelada como nunca, das diferenças combatidas como se fôssemos um só ser. Narcísico por excelência. O que contraria toda a evolução. O ano em que, paradoxalmente, foi anunciado que deveremos nos armar para combater a violência. Armar e não amar, o que já está se concretizando. Ano em que os tratados de cuidados com o planeta foram desrespeitados pelas maiores potências. Em que foi declarado o retorno da caça às baleias. Ano em que a violência contra as populações mais vulneráveis, contra mulheres, contra os diferentes do estabelecido, as minorias, se descortinou como nunca. Em que as pessoas mais trocaram o brilho do olhar pelo brilho das telas dos smartphones. Em que a fome e a miséria voltaram a crescer...

E desejava, um pouco para cumprir o ritual, mas muito mais pela ingenuidade dos que sonham (e disso não abro mão) que 2019 fosse um ano de profundas e verdadeiras reflexões, de resgate de antigos sonhos e que novos pudessem ser fertilizados. Que a esperança se revitalizasse e que os gestos mais simples de amor, solidariedade, respeito e responsabilidade fossem aliados no trabalho de cada novo dia. E que a paz, para todos, fosse uma busca constante e incansável.

Já neste fevereiro do ano novo de 2019 assistimos, um tanto cansados pelo amargor reincidente de mensagens ritualísticas como a minha e as de tantos outros, que parecem ser levadas por tsunamis de rejeitos de mineração, por incêndios em alojamentos de garotos, por 13 homicídios numa só ação policial, por morros descendo abaixo lavando e soterrando populações fragilizadas, por perdas, perdas e mais perdas. A maioria evitáveis.

Brumadinho, Flamengo, morros cariocas, periferias, e etc, etc, etc, tragédias humanas anunciadas à exaustão que se cumprem também como se fossem rituais. E o são. Rituais de morte que insistem em se repetir e a ganhar luz vindos das profundezas dos porões da alma humana. Muito pouco diferentes dos estados de guerra. E nós, psicanalistas conhecemos bem tudo isso, assim como Albert Einstein conheceu em carta resposta de Sigmund Freud em 1932 e que me ajuda a compreender porque não abro mão da minha sonhadora ingenuidade pacifista.

Explico melhor: em 1931 o Instituto Internacional para a Cooperação Intelectual foi instruído pelo Comitê Permanente para a Literatura e as Artes da Liga das Nações, a promover trocas de correspondências entre intelectuais de renome, a respeito de assuntos destinados a servir aos interesses comuns à Liga das Nações e à vida intelectual, e a publicar essas cartas periodicamente. Entre os primeiros que o Instituto abordou estava Albert Einstein e foi ele quem sugeriu o nome de Sigmund Freud. Assim, em junho de 1932, o secretário do Instituto escreveu a Freud, convidando-o a participar, ao que ele prontamente aceitou. A carta de Einstein chegou a Freud no início de agosto, e sua resposta estava concluída um mês depois. Esta troca de correspondências foi publicada pelo Instituto em Paris, em março de 1933, em alemão, francês e inglês, simultaneamente. Embora sua circulação tenha sido proibida na Alemanha.

Destaco aqui alguns trechos da carta de Freud a Einstein:

“As leis são feitas por e para os membros governantes e deixa pouco espaço para os direitos daqueles que se encontram em estado de sujeição... Gostaria, não obstante, de deter-me um pouco mais em nosso instinto destrutivo, cuja popularidade não é de modo algum igual à sua importância. Pudemos supor que esse instinto está em atividade em toda criatura viva e procura levá-la ao aniquilamento, reduzir a vida à condição original de matéria inanimada. Portanto, merece, com toda seriedade, ser denominado instinto de morte, ao passo que os instintos eróticos representam o esforço de viver. O instinto de morte torna-se instinto destrutivo quando, com o auxílio de órgãos especiais, é dirigido para fora, para objetos. Uma parte do instinto de morte, contudo, continua atuante dentro do organismo, e temos procurado atribuir numerosos fenômenos normais e patológicos a essa internalização do instinto de destruição. O senhor perceberá que não é absolutamente irrelevante se esse processo vai longe demais: é positivamente insano... Vale lembrar aquela imagem inquietante do moinho que mói tão devagar, que as pessoas podem morrer de fome antes de ele poder fornecer sua farinha... Por que o senhor, eu e tantas outras pessoas nos revoltamos tão violentamente contra a guerra? Por que não a aceitamos como mais uma das muitas calamidades da vida? A resposta à minha pergunta será a de que reagimos à guerra dessa maneira, porque toda pessoa tem o direito à sua própria vida, porque a guerra põe um término a vidas plenas de esperanças, porque conduz os homens individualmente a situações humilhantes, porque os compele, contra a sua vontade, a matar outros homens e porque destrói objetos materiais preciosos, produzidos pelo trabalho da humanidade.... Penso que a principal razão por que nos rebelamos contra a guerra é que não podemos fazer outra coisa. Somos pacifistas porque somos obrigados a sê-lo, por motivos orgânicos, básicos...” (Sigmund Freud, Viena, setembro de 1932).

Ingenuidade sonhadora esclarecida com competência, a meu ver, porque certamente haverá controvérsias. Ocorre-me lembrar de um paciente em análise dizendo-me estar muito triste e angustiado porque um amigo tentava diminuí-lo. Tive a oportunidade de lembrá-lo que ele era o único responsável por si mesmo e que, portanto, apenas ele seria capaz de se diminuir ou de se desenvolver, de se submeter ou de se rebelar. Mais algumas associações, ainda no curso da mesma sessão e ao final ele pode me dizer sobre a sensação de liberdade, de menos angústia e de que a tristeza havia dado lugar à esperança.

Tragédias anunciadas como as que estamos assistindo neste início de 2019 nos mostram o que Freud, Einstein, meu paciente e eu podemos aprender com a psicanálise, que poderiam evitar tragédias anunciadas como as que amargamos e que é a minha resposta mais breve quando me perguntam o que faz a psicanálise, qual o seu objetivo?

Reduzir a insanidade bruta e amarga dos nossos instintos mais sombrios e perversos, poder sublimá-los em algo construtivo ou menos destrutivo, desenvolver a nossa responsabilidade sobre o que sentimos, pensamos e fazemos, ainda que não tenhamos consciência disso, nos apropriarmos do nosso direito à vida, ao respeito e à esperança ou que seja, por motivos orgânicos e básicos que nos impelem ao pacifismo, ainda que alguns prefiram chamá-la de ingenuidade sonhadora. Não podemos fazer outra coisa.

Adalberto A. Goulart

Presidente do Núcleo Psicanalítico de Aracaju

Coordenação: Danilo Goulart