Estranheza

05/04/0219

 

 

 

A cena de um filme marcou-me, pelo inusitado. A esposa entra no quarto do casal e vê o marido com uma desconhecida. Atordoada, vocifera insultos, descontrola-se enquanto ele, inalteradamente, senta-se na beirada da cama e começa a vestir-se. Desconforto e estranheza inundam-me. Ao final da cena, o marido, completamente trajado e ainda impassível aos protestos, dirige-se à sala para tomar café. Estão a sós. A esposa olha o entorno, nulo de indícios do sucedido, e cala. Começa a duvidar do que viu. Serve-se, também, de café.

Transcorridos 55 anos da intervenção militar que perdurou por duas décadas no Brasil, embaçados tornam-se os fatos? Ouvem-se e publicam-se versões conflitantes. Em 1964, ocorreu, afinal, golpe militar e implantação de uma ditadura ou tratou-se de intervenção do exército com apoio popular? O país atravessava perigosa instabilidade, ameaçado de conflagração violenta, golpe da esquerda ou a vulnerabilidade dos cidadãos inaugurou-se como conseqüência da política abusiva e criminosa do governo militar?

Enquanto os meios de comunicação questionam se a intervenção de 1964 foi necessária e contou com suporte popular, adentra-se território delicado e controverso. Diversamente, porém, quando lê-se, como em recente artigo publicado em jornal de Porto Alegre, que “o período militar foi marcado por 20 anos de pleno emprego, segurança e respeito aos humanos direitos”, eu penso que estamos frente a um fenômeno de outra ordem que de um pluralismo democrático.

Como harmonizar tal assertiva, à semelhança a outras que se multiplicam quotidianamente na mídia formal, com os fatos apurados pela Comissão Nacional da Verdade, embasados em inúmeros testemunhos, documentos, fotografias, filmagens?

Como psicanalista, prezo profundamente as interpretações subjetivas e as verdades internas de cada um, e reconheço que o árduo caminho que leva ao crescimento emocional genuíno envolve o reconhecimento das verdades alheias e fatuais.

Entre o preto e o branco, reinam, sim, tonalidades de cinza, nem toda a história é feita só de mocinhos e bandidos, mas da anistia parece-me que nos encaminhamos, incautos, à negação de incontestes crimes, e já começamos a nos servir de café...

Idete Zimerman Bizzi

Psiquiatra

Psicanalista,

Membro da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre.

Coordenação: Danilo Goulart