A ampulheta e o tempo

30/03/2019

 

 

A caça, a pesca e, um pouco mais tarde, a agricultura eram atividades fundamentais para a sobrevivência de nossos ancestrais, mas nem sempre eram bem-sucedidas. Aos poucos descobriu-se que determinadas épocas eram mais favoráveis para uma ou outra atividade. Da necessidade surgiu a habilidade de perceber acontecimentos cíclicos na natureza como as estações, épocas de migração, etc. Com a percepção desse movimento cíclico foi possível desenvolver uma noção de tempo que foi se aprimorando até se tornar o que conhecemos hoje, com seus vários instrumentos de medição do mesmo.

A ampulheta é um desses instrumentos de medição do tempo, que apesar de antigo ainda é utilizado hoje em dia. Pretendo voltar a atenção para este instrumento, pois, ao olhar mais atentamente, ele pode nos dar uma lição interessante sobre a passagem do tempo.

Descritivamente, esse instrumento se constitui de uma armação suporte para uma peça de vidro, que lembra formato do número 8, com uma quantidade x de grãos de areia em seu interior, operando da seguinte maneira: ao colocá-la de pé, o punhado de areia que está na parte superior da peça cai para a parte inferior através de um pequeno orifício no centro que a divide. O tempo que a areia leva para cair é aproximadamente o mesmo todas as vezes que for virada.

Sabendo como funciona podemos tentar entender a lição que ela nos dá.

Sugiro representar a divisão temporal como a conhecemos, passado-presente-futuro, através das partes da ampulheta. O futuro estaria representado pela parte superior da ampulheta, enquanto a parte inferior desta seria a representação do passado. Na base da ampulheta descansam os grãos de areia que já caíram do topo.

Mas, ao observar a areia caindo, a parte que consegue prender a minha atenção é a estreita passagem central. É aí que tudo acontece, no centro, da forma como apresento minha ideia, está representando o presente. E consegue representá-lo muito bem, sendo que é possível perceber quão rápida é a duração da passagem do grão pelo centro da ampulheta.

A areia que já caiu na parte inferior da ampulheta fica estática, sofre influência apenas daqueles grãos que estão se assentando, causando acúmulo em seu grande recipiente de “memórias”, do que já passou pelo centro (areias passadas). Na parte superior também encontramos seus grãos imóveis, exceto por aqueles que vão cair e esvaziar o recipiente.

No centro, porém, é preservada uma característica única que as outras partes (passado e futuro) não possuem. O movimento é constante. Nenhum grão fica parado ali, pois não existe essa possibilidade. Lá no centro o movimento é contínuo até que se esgote a areia do topo.

Penso que essa é uma valiosa lição, da mesma forma que funciona a ampulheta, funciona a vida e o presente que conhecemos: é o constante movimento e a curta duração. Do futuro, inexistente para nós, caem os grãos que atravessam por um curtíssimo período de tempo nosso presente. Em um instante esses grãos já estão alojados no passado, que ganha forma através de nossas lembranças. Breve a areia e a vida terão se esgotado e diferente da ampulheta, não há possibilidade de virar para recomeçar a cair seus grãos. O ser vivo é uma ampulheta que só faz uma contagem.

Um grão que cai pelo centro não repete seu percurso. E um grão nunca será igual ao outro, cada um dispõe de peculiar característica e forma. Cada pessoa é responsável pela apreciação e manejo desses grãos passageiros. Enquanto passam pelo centro estes grãos se tornam experiências vividas, e cada um as viverá da forma como for possível naquele momento. Após serem vividas, as experiências se tornarão memórias dentro de nós e permanecerão guardadas para nos ajudar a viver as próximas experiências (vou repetir o que já fiz ou posso fazer diferente?).

A natureza nos ensina que a vida é movimento e o nosso presente, assim como no centro da ampulheta, é essencialmente movimento. É aí que a vida e tudo mais acontece. O passado e futuro não existem para nós, ganham forma através de nossas lembranças e nossos desejos. É no presente que nos encontramos.

Muitos ainda pensam que a psicanálise trabalha com problemas do passado, sofrimentos e traumas da infância. No entanto, se passado não existe como trabalhar? Se o sofrimento está presente na pessoa que busca ajuda então não estamos falando do passado, mas do presente. O sofrimento se mostra nos grãos que estão passando pelo centro e na forma como são vivenciados. Ao se encontrar para uma sessão de psicanálise existe a proposta de olhar para esses grãos, que passam tão rápido, de uma outra forma e proporcionar a possibilidade de vivê-los de outra forma. Uma forma em que o sofrimento e a possibilidade de viver o presente sejam suportáveis.

Artur Ranieri Côrtes Andrade

Psicólogo CRP 19/3144

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Coordenação: Danilo Goulart