Em defesa de uma confiabilidade ambiental mínima

07/02/2017

 

* As ideias e opiniões contidas no texto são de responsabilidade do autor, não refletindo necessariamente a opinião do NPA.

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Em defesa de uma confiabilidade ambiental mínima

Três crianças balançam o corpo ao ritmo de um som que não é reproduzido no vídeo. Estão uniformizadas. Parecem fazer parte de um grupo de torcedores em algum evento esportivo, provavelmente apoiam o time da escola. Podem ter oito, nove, não mais que doze anos. Alguém assiste as imagens e vê a oportunidade de usá-las para alguma diversão, então compartilha o vídeo com uma legenda dedicada a cada uma delas: a primeira teria tomado meia dúzia de cervejas. O menino ao lado, chacoalhando a cabeça com olhar perdido, doze cervejas e seis “shots”. Outro mirava bem fixo o horizonte: esse ingeriu drogas.

Não chega a causar espanto que haja quem faça uso desse vídeo para tirar uma graça com a espontaneidade alheia. Sempre houve, sempre haverá a necessidade de projetar o ridículo, de rir do tropeço do vizinho. Estão aí os palhaços de profissão a sobreviver da penúria universal. Mas já temo que em breve eles terão de procurar outra ocupação. Ou ainda restarão os que se dispõe a pagar entrada para o circo com tanta chacota grátis via smartphone?

Algo me espanta? Me espanta a intensidade do compartilhamento. Me espanta receber em três diferentes grupos o mesmo vídeo-sucesso: ao final de algumas imagens de um barco com lindas meninas dançando de biquíni, a montagem com o pré-escolar diagnosticando: “tudo puta”. O menino na certa já é famoso em seu círculo social. Tenho a lembrança dele sendo inserido ao final de pelo menos um outro vídeo em que ele descobria por onde andavam as mulheres da vida.

Na realidade, me incomodam até mesmo os vídeos de crianças em condições um pouco menos degradantes: as que são flagradas na intimidade do choro, as que brigam com a mãe pelo amor do pai, as que caem da bicicleta, as que observam a loira posando pra selfie na frente do espelho, as que dão de nariz no pudim.

Compartilho uma breve experiência empírica: tendo sido eu tomado de uma espécie de consciência social, me pus a digitar uma mensagem que reproduzi nos grupos em que aparecia a imagem do menino “voz da experiência”. “Gosto muito de rir das brincadeiras que circulam nos grupos, mas acho que não devemos compartilhar aquelas que expõem crianças”. Devo ter botado água no chope: silêncio total e absoluto. Deveria já saber: grupos de whatsapp existem por uma infinidade de motivos e finalidades. Em alguns deles, proteger a infância não está entre eles. Ingênuo, alguém já disse, é aquele que descobre depois.

Se há algum conflito entre os princípios de beneficência e autonomia, devo ser mais inclinado por esse último: me parecem com frequência impróprias até mesmo as imagens em momentos de gracejos. (Gostaria o senhor bebê de ter sua queridíssima imagem compartilhada por lares e aparelhos aleatoriamente distribuídos pelo planeta ou optaria vossa meninicência por manter seu bilu tetéia sob domínio restrito do papai, da mamãe e da vovó?). E nesse debate, não vejo necessário nem mesmo incluir possíveis danos futuros de auto-imagem, o estímulo ao exibicionismo e à pseudo-maturidade. Prefiro considerar que o adulto é o guardião da intimidade da criança. Há leis de sobra que tratam desse compromisso com a infância. Sinto falta é de uma lei que garanta o cumprimento da lei.

Peço então ajuda a Donald Winnicott e ele me fornece no texto Segurança, publicado em A família e o desenvolvimento individual: “É necessário que se edifique, no interior de cada criança, a crença em algo que não seja apenas bom, mas que seja também confiável e durável”. Winnicott está atento “ao papel da sociedade em relação a nós”. E se eu tivesse usado as palavras do próprio Winnicott - “sem uma confiabilidade ambiental mínima, o crescimento pessoal da criança desenrola-se com distorções”, teria tido mais chance em convencer alguém?

Nossa sorte é chegar o mês de dezembro. E, com ele, as imagens e o sons de youtube.com/watch?v=Cs4G-TD8w8A. Sugiro assistir. E compartilhar.

Fábio Brodacz

Psiquiatra Membro aspirante da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre