Prematuridade e algumas nuances

24/11/2016

 

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Prematuridade e algumas nuances

Gestação interrompida. O susto de ver chegar antes do tempo esperado um ser que depende completamente. O dever de se fazer mãe enquanto as primeiras fantasias sobre o bebê ainda se formavam: como serão seus olhos, com quem vai se parecer, será que vamos ser amigos? Tanta vida há no gerar, tantos sentimentos afloram, alguns até adormecidos! E agora? Como será? O ambiente se organiza, família e amigos se responsabilizam. Mãe e pai são cercados de cuidados.

Cuidados extremamente necessários, pois o filho saiu do ventre e não foi para os braços. O útero, agora vazio, chora a ausência e a saudade de quem deveria estar tão perto ao ponto de dois quase serem um. Como sentir saudade de alguém que acabou de conhecer? Havendo saúde psíquica, a relação mãe-bebê é simplesmente visceral desde os últimos meses de gravidez até os primeiros meses do infante. É o momento na vida do ser humano que a devoção de uma mãe em relação a seu filho é considerada saudável; por outro lado, o bebê é, em absoluto, dependente dessa mãe. Quando falo mãe, leia-se ambiente visto que em muitas famílias, por alguma razão, não é a mãe quem faz esse papel. É exatamente a situação aplicada a bebês prematuros que, em lugar de irem para casa com os pais, ficam internados nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI) recebendo cuidados que deveriam ser dispensados pela família.

Dito isso, como lidar com essa separação abrupta e forçada que se impõe sem pedir licença? Separação, sim, pois, apesar de o Estatuto da Criança ser claro quanto ao acompanhamento integral dos pais aos seus bebês, alguns hospitais particulares no nosso País ainda lhes impõem horários de visita, como se os pais fossem o intruso e precisassem de autorização para ver o próprio filho que acabara de nascer. Essa infração da lei é uma dura realidade para pais recém feitos, que se tornam reféns do medo de ir contra aquele que é detentor de conhecimento para salvar a vida do filho ou simplesmente para não maltratá-lo, como disse uma mãe de prematuro:

“Tento ser agradável e simpática com todas, não falo minha opinião, não reclamo, tudo para não tratarem meu filho com indiferença ou maltratarem ele.”

Como lidar muitas vezes com o corpo em recuperação de um parto, com a brusca queda de hormônios? Como agüentar a cansativa rotina de passar horas no hospital sem lugar para descansar, ter que pedir licença para tocar, pegar seu filho nos braços? Essas situações são, no mínimo, dolorosas. A vida sendo controlada por aparelhos, a falta de privacidade, a relação sendo construída aos olhos muitas vezes críticos de profissionais que estão ali para fiscalizarem a menor infração quanto ao ritual necessário para uma aproximação com seu bebê.

“O mais difícil pra mim foi o medo de perdê-la, as intercorrências que ela poderia ter por conta da prematuridade e principalmente o sofrimento que ela estava passando... os exames, os procedimentos... aliados a uma sensação de impotência enorme! No decorrer do internamento, foi o fato de ter de me separar dela em alguns horários e principalmente à noite. Saber que ela iria chorar e não iria ter ninguém pra acalentar, deixar uma pessoa estranha alimentar minha filha, trocá-la, principalmente quando a profissional não era carinhosa.” D.O. , mãe de uma bebê prematura.

São tantas experiências e sentimentos que o espaço é curto para explorarmos mais. No entanto, algumas reflexões podem ser pensadas.

Dor aliviada é dor diluída. Os pais suportarem essa dor com saúde emocional sem um entorno cuidando deles é uma tarefa quase desumana, pois assim como o bebê precisa de alguém que se identifique com ele, os pais precisam de pessoas que possam se colocar na pele deles, guardando-se as devidas proporções, obviamente. Uma tia, uma avó e até um vizinho para passear com o cachorro são bálsamos nesses momentos de incerteza (a fantasia de que a qualquer momento alguém do hospital pode ligar e dizer que o bebê não resistiu é insistente). Como diz o provérbio africano: “é preciso uma aldeia inteira para cuidar de uma criança”.

Quando o ambiente é suficientemente bom, torna-se menos difícil suportar a dor da saudade, da frustração, da impotência. O que seria um ambiente suficientemente bom? É um ambiente composto por pessoas que cuidem com uma certa solidez dos acontecimentos ao redor dos pais (no caso) segundo a necessidade dos mesmos. Nesses momentos, a libido é retirada do mundo e voltada para esse outro de continuidade existencial ainda duvidosa. Freud (1914) dizia que o ficar doente estabelecia uma retirada de investimentos dos objetos a fim de que esses investimentos voltassem para si. Não é muito diferente do que acontece com o nascimento do filho, em especial para as mulheres. O ego delas está intimamente ligado ao bebê, como se ela e ele fossem um. Até certa idade do bebê esse movimento é saudável, ela precisa estar dotada do que Winnicott (1956) diz de uma preocupação materna primária. Então, torna-se difícil voltar-se para pequenos outros afazeres que, por menores que sejam, tornam-se enormes diante do contexto.

A forma como cada pai e mãe vivem a prematuridade de um filho depende da subjetividade de cada um como pessoa; depende da potência de ser, como diz Winnicott, que nunca está acabada, mas sempre se refaz. Resiliência é uma boa palavra para esse tempo de rever prioridades e refazer plano; sem dúvida, é uma boa palavra para quem precisa se fazer de novo frente a um evento traumático e ao medo diário da possibilidade de perder.

Denise AlencarPsicóloga, CRP 02/13110.Especialista em Psicologia Clínica pela UNICAMP Psicanalista em formação pela Sociedade Psicanalítica do Recife