Os sonhos

19/09/2016

 

 

Os sonhos

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“Somos feitos da matéria de que são feitos os sonhos; nossa vida pequenina é cercada pelo sono”. (William Shakespeare – A Tempestade - Ato 4, Cena 1)A frase é linda. Mas afinal, pergunto-me: que matéria é esta, que – diz-nos Shakespeare - nos assemelha aos sonhos?

Pretensão humana? Somos tão vastos assim? Porque é como se eles, nossos sonhos, fossem mais que nós mesmos... Não têm tamanho.... não têm peso... não tem idade... não têm, limite - muitas vezes.

Neles voamos... viajamos... nos tratamos. Às vezes sofremos - mas logo acordamos. São muito mais do que somos. Será? Ou... são o que somos? Em estado bruto. Somos feitos da mesma matéria que os sonhos. Uma vez que aquilo que nos liga a eles, nada mais é, que nós mesmos.

Freud já o sabia, mais de um século atrás (1900). Deixou seus colegas neurologistas a ver navios (não somente em sonhos), ao afirmar que, um sonho, era muito mais que uma ‘simples descarga cerebral’ – como queriam acreditar. Aliás, visão de muitos até hoje, que passam a régua da lógica cartesiana sobre toda a riqueza da subjetividade humana mais profunda, misteriosa e não controlável.

E sabia da importância do que dizia. Precisou de um pouco mais de 700 páginas* (que o levaram ao prêmio Goethe de Literatura em 1930 pelo conjunto de sua obra) para dizê-lo, claramente.

Com seu trabalho, de início, ele entendeu que o que os sonhos representavam se aproximava mais do que os leigos acreditavam do que os cientistas de sua época. Ou seja – que, ao invés de uma mera descarga cerebral em forma de imagens, somente – os sonhos diziam-nos algo mais.

Não exatamente a ‘premonição’ que também se lhes atribuíam leigamente à época (e também ainda hoje). Mas, antes um conhecimento maior, sobre nossas mentes. Sobre nossos funcionamentos. Sobre nossos desejos, medos, e... tudo o mais que é nosso, e geralmente desconhecido em vigília. Afinal, o sonho é nosso. O produto, é de fabricação própria - da nossa mente. Contando-nos assim, a nós, muito do que não sabemos sobre nós mesmos.

E assim, este algo mais, é o que Freud descreveu, magistralmente. E o que uma análise reitera, a cada vez que, com o viajante no divã, analista e paciente aventuram-se, vez ou outra, nas profundezas de um sonho.

“Freud foi uma dessas pessoas peculiares que parecia pensar que sonhos merecem maior consideração”, afirmou despretensiosamente Bion (1977), outro grande psicanalista que, ele também, em seu dialeto, ‘falou a língua dos sonhos’.

“Para lembrá-los”, disse-nos Bion, “da existência deste estado de mente peculiar onde nós vemos coisas e vamos a lugares os quais, quando nosso estado de mente muda porque acontece o que chamamos ‘acordar’, então ignoramos esses fatos, essas viagens, essas vistas, sob o fundamento de que são apenas sonhos.” (de Taming wild thoughts, W. Bion, 1977).

Sonhos não são ilógicos. Têm sua própria lógica – sua própria maneira de ‘funcionar’. Desfiguramos, transformamos homens em mulheres, mulheres em homens, em crianças, em ‘outros’, estranhos e conhecidos, jovens e velhos, vivos e mortos. Trazemos o passado de volta e escrevemos, com nossa mente, enredos maravilhosos e, certamente, misteriosos.

Porém sempre, verdadeiros – por mais que queiramos dizer o contrário. Revelam alguma verdade, sobre nós mesmos. Resolvemos conflitos e até mesmo, às vezes, a questão maior de todas: o duelo da vida e da morte. Por algumas horas, a vida ‘de fora’ para, e cede lugar para esta outra dimensão de nossas mentes, às vezes tão negligenciada... esquecida... ignorada.

Assim como nossa mente noturna, nossa mente diurna às vezes também encontra estes outros estados: de fúria, ciúmes, raiva, paixão. Parecem-nos estranhos. Mas são em realidade, familiares... afinal, são produtos nossos. Claro, aceitar isto tudo, é um pouco questão de... opção? Talvez.

É noite e, para concluir – talvez um pouco precipitadamente, devido ao sono – este assunto que mereceria milhões de minutos (o tempo atemporal tal qual o do sonho), lhes desejo o que também me desejo: bons sonhos! Pois, \"o resto”, afinal, “é silêncio\" - também disse Shakespeare, para fechar e, ao mesmo tempo agora, abrir, com chave de ouro o baú do fundo do oceano da minha mente noturna... que começa a despontar.

* FREUD, S., A Interpretação dos Sonhos, Obras Completas de Sigmund Freud, vol. IV, Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1900/1987.

Cláudia C. Antonelli

Psicóloga - CPR 06/81515

Psicanalista em Formação - Grupo de Estudos Psicanalíticos (GEP, Campinas)

Especializada em Saúde Mental e Mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP)

Especialista em Línguas Estrangeiras (ONU-Genebra)

Publicou recentemente o livro “O Estrangeiro – Eu e Você.

Um olhar Psicanalítico Contemporâneo”, pela Editora NEA.

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