Jogando futebol entre os mortos na praia

26/04/2016

 

Jogando futebol entre os mortos na praia

Quer imprimir ou arquivar? Clique aqui.

O que significa ser “humano”? Diria, sem receio, que ser “humano” engloba todas as ações e reações possíveis, tanto para fora, como para dentro de si. Causa-me estranheza – porém, uma estranheza que faz pensar – quando as pessoas, se sentindo acolhidas pela fonte de ouro da humanidade, falam como se estivessem negando a totalidade da nossa natureza: “Ah, mas isso é desumano!”. O que é desumano é também humano. Antes, isso estaria em nossas mentes como um paradoxo, não é mesmo? Mas não é bem assim. Não percebo o ato desumano como o contrário do ato humano, mas, sim, podemos dizer, como uma das formas de ser do humano em seu contexto negativo.

Essa repercussão interior emergiu em mim quando li uma reportagem, dessas, que perpassam em nossa página do perfil do Facebook, em que se tratava de uma crítica frente a alguns rapazes que continuaram jogando futebol na praia ao lado de dois corpos mortos, que morreram por conta do acidente da ciclovia no Rio de Janeiro recentemente. Aqueles que compartilharam a reportagem no Facebook saltavam com o discurso do “desumano”, e em seguida, sustentavam a ideia: “Estes são menos humanos”.

O viés econômico de quem é “mais humano” ou “menos humano” não reconhece, a meu ver, que o que é profícuo de nossa natureza são justamente as diversas singularidades de resposta aos fenômenos que nos cercam. Acreditar que o humano só é humano se houver uma característica específica de resposta a um determinado acontecimento é fazer destaque a uma utopia instintiva que muitas pessoas ainda não se permitem pensar de forma crítica e sensível.

Os instintos desconhecem a profundidade da subjetividade e, portanto, evidentemente, da singularidade. Os instintos se valem do caráter estereotipado, se movem por determinações bastante específicas de comportamento. Temos esse dado? Temos, sim, porém, somos atravessados por inúmeras questões, afinal, a nossa subjetividade não fala somente a linguagem instintiva. Vai além desse caminho, sobretudo, firma a direção pulsional. Isto é, ela compreende o psiquismo em diálogo com o que é urgente da força endossomática. É por meio da pulsão que nos movimentamos.

Permitam-me encerrar esse discurso por aqui, pois o texto não cabe tamanha continuidade teórica.

Voltando ao tema do cotidiano que me fez pensar, tenho em minhas elucidações internas, que a cisão do ego é uma ferramenta importante para as nossas vidas. Mas, antes, vocês fazem ideia do que estou, aqui, chamando de cisão do ego? Tentando ser breve e didático, podemos entender que há um movimento de “cisão do ego” quando a realidade externa – em ordem convencional - não se afirma possível de ser apreendida em minha capacidade psíquica diante do diálogo: realidade externa/realidade interna. Nesse sentido a realidade interna nega a realidade externa. Daí, eu posso ser capaz de jogar futebol e ignorar os corpos mortos. É pesado olhar para a cara da morte, não acham? Diante dessa possibilidade defensiva do ego, eu também posso fazer uma cirurgia bastante delicada, caso eu seja um cirurgião, percebem? Eu também posso perder um parente que muito amo e dizer que este não morreu. Por meio da cisão do ego eu posso negar essa realidade dolorosa que se apresenta.

Não se trata de ser “mais humano” ou “menos humano” ou “desumano” como o contrário de humano. O que está em jogo aí é quem é capaz de suportar mais ou menos a dor psíquica. No fim somos todos humanos. Seja com as nossas neuroses, perversões, psicoses e tudo mais. Somos humanos, e cada um é singular, pois age e reage a seu modo próprio. Isso é profundo, e para além, muito sensível.

João Paulo Corumba de Santana

Psicólogo CRP 19/2697 Coordenador do Projeto Psicanálise e Literatura do NPA

Candidato à Formação Psicanalítica pela Sociedade Psicanalítica do Recife (SPR)

Membro-fundador do Instituto Psicanalítico de Formação e Pesquisa A. B. Ferrari no Brasil.

[email protected]

Data de publicação: 26/04/2016