Escuta-se com o quê?
22/04/2015
Escuta-se com o quê?
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Um dos temas mais falados e debatidos nas áreas de pesquisa e conhecimento humano, principalmente nas chamadas áreas “psi”, é o que me proponho a discutir nesse texto: a escuta.
Então, o que é a escuta?
Exponho uma dificuldade em se definir tal conceito, entretanto, a meu ver, o que posso dizer, é que sinteticamente a escuta é um instrumento de contato, é um instrumento de trabalho que possibilita conhecer o outro e, por que não, a nós mesmos.
Mas, a questão que rodeia meus pensamentos é outra: escuta-se com o que?
Acredito que a escuta analítica não é feita apenas pelos ouvidos e me atrevo a dizer que esse seja talvez apenas mais um órgão de percepção dos sentidos que seria um integrante do instrumento do qual vos falo, mas não o único e talvez nem mesmo o principal.
Mas, para que possamos perceber qual o sentido do momento vivido, devemos nos “desligar” da escuta do ouvido e escutar com todo o nosso corpo, com todo o nosso ser, com tudo o que somos naquele momento, no determinado espaço-tempo fomentado pelo presente.
Muitos falam em linguagem corporal, comunicação não-verbal.
Devemos estar dispostos a viver o tal momento que nos chega de forma “livre”, nos propondo à criação de um novo canal para a experimentação e transformação, pela caminhada ao novo.
Alguns perguntam: e aí? Eu vou trabalhar com o que?
Tudo o que posso dizer é: não podemos saber até que surja!
Precisamos conhecer os nossos próprios meios, o nosso próprio ser, pois a partir dele é que conhecemos os outros e o que está ao nosso redor.
Às vezes nos comunicamos através de palavras, outras através do olhar, ou do cheiro, por gesto e até por outras, sendo elas diretas ou indiretas. Precisamos então estar abertos ao que nos chega, valorizando tanto o que nos chama mais atenção, quanto o que não, o tema principal, mas também as tais comumente desconsideradas “bobagens sem sentido”.
Se nos propusermos a focar na escuta do ouvido, ou somente nos nossos sistemas sensórios ou senso-perceptivos podemos perder a imensa quantidade de informações que nos sãopassadas de outras formas, até as que nós mesmos queremos nos dizer.
Não deveríamos então sucumbir ao não saber, devemos, ao contrário, abraçá-lo. Não sabemos como tal conhecimento nos chegará, ou qual o sentido da conjectura que poderemos formar, e talvez ficaremos como o náufrago sem remos, à espera do vento que virá a soprar, mas com paciência, e auto-continência, ele virá.
Lembro-me de uma pequena história:
Era noite. Chovia violentamente pelas ruas da cidade. Em uma dessas ruas frias havia uma mulher vagando, que chorava o choro de uma angústia que esmagava seu peito. O choro expõe somente sua dor em seu caminho, até que surge uma voz ao longe que diz:
S- por que chora, minha senhora? Qual o sentido da dor, que está tão sofridamente a expor?
M- estou perdida, não sei para onde ir, nem sei se um dia, encontrarei um caminho que me faça sorrir. – responde a mulher.
Então o sujeito da voz, num canto escuro onde a mulher não o via, fala:
S- Acredito que esteja no caminho certo pelo incerto. Chegará ao lugar não dito.
Causando uma grande confusão na mulher que repentinamente para de chorar e pergunta:
M- Não entendo! O que faço?
S- Não sei o que fazer. Mas posso te dizer que essa é a melhor maneira de se chegar a um lugar onde nunca se esteve. – a voz conclui.
Retornamos à escuta.
A escuta, a meu ver, é assim, talvez além dela, a vida.
Suportaremos então a angústia do não saber para que nos aproximemos ao que tange a relação no momento presente, aqui e agora.
E então, se escuta com o que?
Olhos, ouvidos, boca, nariz, pele? Também!
Mas ouso pensar que escutamos com cada célula de nosso corpo, com cada componente delas, com cada átomo e cada partícula subatômica, apenas não tivemos a chance de perceber, ou talvez possamos ter perdido a capacidade para tal.
"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...
E conversamos toda a noite, enquanto
A via-láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.
Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"
E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas."
(Olavo Bilac, 1888)
Danilo Gama Goulart
Psicólogo CRP 19/2692 e
Coordenador do Projeto Psicanálise e Cinema do NPA
data de publicação: 21/04/2015