Uma noite afetiva por Buenos Aires

23/09/2014

 

Uma noite afetiva por Buenos Aires.

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"Você gosta de que tipo de música? Te interessa Pink Floyd? Te interessa John Lennon? Te interessa Rolling Stones?". Assim perguntou o taxista argentino pelos bairros em que as rodas se permitiam transitar. Na minha mente ocorria algo diferente, o que me fez perguntar: " Por que essas perguntas? Você gosta de todas essas bandas?". O motorista balançou que sim com a cabeça e aumentou ao volume máximo. Mal podíamos conversar. Ou melhor, parecia que ele queria propor uma conversa a nível não verbal, somente pela afetividade exalada naquele momento.

Trata-se de outro tipo de comunicação. Nem sempre as palavras nos querem. Podemos até lembrar de Manoel de Barros quando nos fala que as palavras nos acham e não o contrário. E isso é, a meu ver, o básico necessário.

Havia recebido recomendações de que era preciso ter cuidado com os taxistas de Buenos Aires. "Alguns te passam notas falsas", um comentário surgiu de um próprio argentino preocupado em nos informar sobre como proceder em sua cidade em determinados aspectos. Mas naquela ocasião algo parecia ir para um contato interior, longe de qualquer armadilha psicodinâmica que destoasse da boa intenção.

" O que quer me dizer esse taxista com esse volume de despertar cada poro da alma? Será a angústia da solidão de trabalhar em trânsito com diversos desconhecidos constantemente e não ter um contato verdadeiro, uma vez que tempo lhe falta? Será a necessidade de compartilhar a dimensão afetiva com alguém, ainda que seja estranho, mas que pode ser capaz de compreendê-lo por sentir o gozo na mesma música de sua seleção?". Me perguntava enquanto as rodas insistam em gastar seus vestidos de pneus pela cidade.

A música prosseguiu, e o silêncio nem sempre é aquele em que nem um simples ruído aparece. O silêncio pode ser da qualidade de um grande barulho. O silêncio pode nos apavorar, pois o silêncio nos faz respirar nossas próprias angústias.

A música aumentou em sua potencialidade do nome. Não se pode negar o fato de que a música nos leva a sentir algo em que a impossibilidade de nomear não se trata de nenhuma novidade. A angústia ali, entre eu e o taxista, dois desconhecidos, além do fato de um brasileiro e outro argentino, e no que diz respeito à dificuldade do idioma na "precisão" da comunicação, nos mostra pela beleza das lentes psicanalíticas que esse mesmo estranhamento se faz no contato entre o analista e o paciente. São pessoas que se encontram para fazer acontecer o estalo afetivo, o encontro, a possibilidade de vínculo, a profundidade capaz de emergir. Cada um tem seu idioma, sua nação, seu universo, o seu olhar. Cada mente, cada alma é única.

A música do taxista poderia não servir para a música interna do passageiro. Cada um tem sua música, mas nesse caso as músicas internas se uniram, se identificaram e o taxímetro deixou de ser tão pesado, ou motivo de conflito. Se entendermos o taxímetro como o princípio de realidade, e o destino objetivo para onde seguia o taxista, podemos cogitar frente a essa oportunidade de exemplo, o fato de que o princípio de realidade serve para proteger os nossos possíveis momentos de prazer. É claro que aqui nesse breve texto, utilizo de metáforas para que não possamos empobrecer na direção única de uma linguagem que produz sonhos. Afinal, se fossemos pelas ruas mais sórdidas de Buenos Aires a fazer longas voltas, e sem mergulhar na dimensão afetiva, certamente o taxímetro se tornaria ameaçador, o destino não seria o da pulsão de vida, e a viagem não seria um motivo para justificar a possibilidade de se desfrutar das belas avenidas largas, da beleza do encontro entre desconhecidos e de todas as outras belezas que ali surgiram.

O percurso termina ao som de Roolling Stones... Chego ao hotel, e o taxímetro nos manteve em contato, serviu como base de possibilidade, tal como um divã, possível da metáfora de um dos transportes psíquicos que nos leva a passear pelos nossos mundos internos, e não se pode esquecer da realidade que na cobra. Mas ainda assim, é necessário elucidar um contraponto. O analista não se identifica com o taxista nem com o passageiro. O analista deixa que a música possa emergir, e seu desejo aí não entra em questão. Nesse sentido se espera que a música do paciente possa despertar, e juntos possam ouvir e cantar.

Não existe diferença de hinos, nação, região, comparação de dor, etc. O que cabe é o respeito pelo outro que sofre, pelo outro que viaja por dentro e canta sua própria música. Essa diferença é importante ser identificada como elemento central de todo o processo. O que podemos coletar como dado presente no meu encontro com o taxista em relação ao processo analítico é justamente o fato do estranhamento entre desconhecidos, a possibilidade do princípio de realidade, das fantasias, do volume da música que pode ser em diversas variações, e da beleza do mergulho afetivo durante o encontro sem que exista uma invasão, ou qualquer movimento destrutivo.

E não se pode deixar de lado. Nem sempre o passeio interno será o da beleza de vislumbrar as partes mais belas da cidade, como me ocorreu. Muitas vezes, durante esse passeio, a realidade interna pesa e na mostra que também temos ruas feias dentro de nós. Nem sempre a nossa Buenos Aires interna pode ser bela o tempo inteiro, ou qualquer cidade que queiramos chamar que existe dentro de nós.

E quanto ao taxímetro? Ah, quanto ao taxímetro, é necessário perceber a sua importância e necessidade, pois tudo tem um preço. Numa análise o taxista desaparece, e o passageiro também. O que existe é o interesse pela viagem em si de um indivíduo que não sabe de onde vem, nem para onde vai, mas que quer descobrir, ainda que muita resistência lhe custe o alcance de sua bela profundeza. E quem sabe assim, num determinado dia,o destino se apresente como a palavra que nos nomeia frente a dor que sentimos nesse mundo tão delicado.

E não seria nada tão mais rico que terminar esse texto citando uma frase de uma das maiores referências da música argentina.

“Tengo que aprender a volar entre tanta gente de pie” - Luís Alberto Spinetta.

João Paulo Corumba

Graduando em Psicologia

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data de publicação: 23/09/2014