O desafio da gestação de espaço psíquico

14/10/2014

 

O desafio da gestação de espaço psíquico.

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Saindo do cinema, do teatro ou de uma reunião, observo-me e aos demais. O primeiro ato, aquele que se tornou emblemático, típico nos dias atuais: ligar e verificar o telefone celular.

Por um vértice, penso que seja possível distinguir, pelo menos, dois tipos de ações automáticas: aquelas de que dependemos para o cuidado com a nossa existência, como comer, tomar banho, colocar uma roupa, pentear o cabelo, deitar para dormir, dentre outras dessa natureza, e aquelas das quais dependemos por razões psicológicas nem sempre conscientes, como fumar, conferir se trancamos uma porta, comer ou comprar compulsivamente, dentre outras de uma ampla lista de possibilidades.

Como ato isolado, ligar e verificar o telefone celular representa uma ação tão automática quanto caminhar, dirigir ou lavar as mãos, somente uma das muitas ações que desempenhamos ao longo do dia. Porém, ao nos determos sobre esse fenômeno com um olhar psicanalítico, temos a oportunidade de entrar em contato com aspectos bastante profundos acerca da nossa relação com o mundo.

A vida moderna nos exige agilidade, atenção a prazos, contatos com instituições e pessoas e uma infinidade de outras ações a fim de garantirmos o cumprimento de metas tão ansiosamente valorizadas. Passamos a entender que o futuro nos aguarda e que não podemos nos dar ao luxo de realizar qualquer parada nesse percurso.

Essa realidade imponente me leva a refletir sobre aspectos fundamentais da vida humana. Quando nasce, o bebê humano necessita dos cuidados e do olhar de outra pessoa. Esse olhar constitui uma importante possibilidade de reconhecimento de sua existência, o que será determinante para a constituição de seu psiquismo, para a construção de sua identidade como indivíduo. A partir desse olhar, o bebê amadurece e começa a acreditar na sua existência como uma pessoa autônoma e possuidora de uma subjetividade particular.

Nesse processo, o bebê dispõe do olhar de quem cuida dele, inicialmente em período integral e, posteriormente, e paulatinamente, passa a dispor desse olhar em intervalos intermitentes. Esses intervalos vão sendo assimilados e aceitos pelo bebê, conforme ele vá percebendo a regularidade e a constância desse olhar. De forma criativa, então, o bebê passa a utilizar esse intervalo para brincar, para “construir” sua existência. Trata-se de um espaço psíquico importante, em que o bebê pode, confiantemente, se colocar em posição de espera: enquanto o olhar não vem.

Nesse processo de desenvolvimento, a expectativa é de que aquele bebê humano, agora adulto, passe a buscar o reconhecimento de sua existência por meio de ações cada vez mais complexas: um bom desempenho escolar, a realização de um trabalho com o qual se identifique, um desempenho profissional crescente; enfim, uma participação cada vez mais significativa e frequente na realidade compartilhada com os demais.

Pode ocorrer, no entanto, que esse processo seja perturbado por alguma circunstância adversa, levando o bebê a não se desenvolver satisfatoriamente ou a sofrer certos prejuízos em pontos essenciais de seu psiquismo. Nessa condição, o indivíduo talvez cresça acreditando que não poderá, sob qualquer hipótese, negligenciar os mínimos sinais de reconhecimento de sua existência na realidade compartilhada.

Retomando o ponto de partida desta exposição, podemos tomar como uma de tantas possibilidades a de que, ao ligarmos, prontamente, nosso telefone celular, ao final de uma sessão de cinema ou de outro evento qualquer, estamos também em busca de sinais de que não fomos esquecidos, de que estamos de algum modo sendo lembrados e conectados com algo que nos garanta o sentimento de amparo, cuidado e atenção.

Num momento como esse, não dispomos da condição daquele bebê que teve a sorte de se desenvolver satisfatoriamente – a possibilidade de criar, dentro de um espaço psíquico de espera. Não podemos aguardar ou vivenciar a experiência de um processo psíquico de gestação. A realidade se impõe e precisamos, com urgência, responder a ela.

Creio que o desafio de gestação de um espaço psíquico, que nos possibilite criar o novo, o singular, o diferente, seja uma questão presente em muitas outras ações automáticas do dia-a-dia. Ligar o telefone celular é apenas uma delas.

Aurea Chagas Cerqueira

Psicóloga, mestre em psicologia clínica (UnB),

Professora de psicologia da Universidade Paulista – UNIP (Campus Brasília)

Membro do Instituto de Psicanálise Virgínia Leone Bicudo da SPBsb.

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Data da publicação: 14/10/2014