Mudanças e transformações

09/09/2014

 

Mudanças e transformações.

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Agradeço a oportunidade dada pelo Núcleo de Psicanálise de Aracaju (NPA) de escrever nesse espaço. Fiquei entusiasmada, pois a última vez que o fiz com tanto prazer foi na minha infância quando eu soltava minha imaginação nas páginas de meu “querido diário”. Nosso tempo é curto, mas acontecem coisas na nossa rotina que parecem torná-lo mais longo e difícil de passar e foi quando me mudei de casa que, apesar da bagunça em minha vida um tanto pacata, escrever esse texto se tornou uma boa alternativa para ajudar a suportar esse tempo caótico.

Mudanças são sempre difíceis e, muitas vezes, assustadoras. Quem já se mudou sabe o desespero de não saber nem mesmo onde está a sua escova de dentes. Pilhas de caixas, poeira que nos faz espirrar, quadros no chão, salas e quartos vazios, roupas fora dos armários, situações que vivi esses dias não são tão difíceis quando comparadas à experiência de acidentes ou adoecimento de nossos familiares ou amigos. Esses sim são terríveis! De forma inesperada e não planejada, desarrumam nossas vidas sem nos dar o tempo para acomodar tantos sentimentos que, muitas vezes, são contraditórios e, como móveis carregados por um Tissunami, são separados e não compõem mais uma sala de jantar. Esses eventos acontecem numa velocidade e intensidade tamanhos que não conseguimos dar significados ao que representam e, aí, enlouquecemos.

Segundo a Psicanálise, o bebê ao nascer sofre uma mudança traumática em sua breve vida pela “falta” do ventre materno. Se pensarmos um pouco, aquele primeiro choro retrata um desespero enorme daquele ser que até então não sabia nem como respirar com seus pulmões que, até então, estavam inundados pelo líquido amniótico. Mas, em seguida, a natureza se encarrega de buscar saídas, ao que Freud chamou de pulsões de vida, e o bebê se aconchega nos braços da sua mãe e os mais vorazes logo procuram pelo seio materno. E, assim, essas pulsões vão nos levando a engatinhar, andar, falar e a construir cada vez mais nossa independência. Antes de minha mudança, assisti uma reportagem na TV a cabo muito intrigante, pois relatava a experiência do ritual de passagem da infância para a vida adulta de jovens índias tikunas da Amazônia. Após sua primeira menstruação, elas ficam enclausuradas em uma casa por um ano aprendendo as tarefas femininas, até que toda a tribo faz uma festa para recebê-las, com danças e cantos, e seus cabelos são, então, arrancados fio-a-fio pelas mulheres mais velhas. Para sua cultura, esse ato significa a perda de seus pais quando crescessem. Pode lhes parecer bruto e agressivo, mas, segundo o depoimento de uma mulher daquela tribo, esse ritual a ajudou a suportar a referida dor sofrida. E aí fiquei me perguntando se aquilo fazia sentido. Será que temos como nos preparar para essas separações ou grandes faltas?

Recorro novamente à teoria psicanalítica e identifico que além daquela força que nos impulsiona para crescer que falei acima, também somos influenciados por outra, a pulsão de morte. Essa não significa que queremos nossa própria morte, mas que parte de nós resiste ao crescimento, como se desejasse retornar ao útero de nossa mãe. Freud chamou de pulsão de “morte” porque é aquela força que nos desliga, nos desconecta de nossos desejos e sonhos. Seu papel é vital para nos preservarmos, nos precavermos, calcularmos o risco dos desafios a que nos propomos, como um freio para nossos impulsos. Hoje em dia, é marcante a nossa busca por tecnologias que nos tragam conforto, segurança e facilidade para o nosso dia-a-dia. Desde o início de nossas vidas, sobrevivemos buscando, como falei acima, o leite de nossa mãe e não paramos mais de buscar “outros”. Nossos pais, irmãos, tios, avós.

Aprendemos a ler, a escrever, conquistamos uma profissão com o incentivo de nossos professores, e conhecemos nossos amigos, entre eles namorados e esposos, por meio de outros amigos. Assim, a fome, o frio, o desconforto da solidão, ou seja, a dor de uma mudança que vivemos, internamente ou externamente, nos move para buscarmos soluções para saná-las e, nessa busca, conhecemos, um dos nossos bens mais caros, nossos amigos. Estarmos seguros, protegidos e nos cercamos de tanta parafernália eletrônica pode estar, desse jeito, nos protegendo também de novas e belas amizades.

E quando não encontramos alguém a quem recorrer em momentos de angústia, encontramos nossas próprias palavras. Bion, um grande psicanalista, também formado em Letras e Medicina, disse em seus escritos que formamos as idéias para lidar com essa vivência de “falta”. Disse ele que a palavra vem para nos confortar diante do desespero que sentimos diante do desconhecido, como mudanças, separações, perdas e “Tissunamis emocionais”. Quando vivemos “faltas”, podemos conhecer novas palavras de forma semelhante àquela quando viajamos na leitura de uma história de aventura ou quando escrevemos um texto que expresse o que pensamos e sentimos. Fenômeno semelhante acontece durante as sessões de análise quando se fala e se ouve as próprias palavras, como também, as palavras do analista que são como “terra firme” onde o paciente pode ancorar o seu barco. Dessa forma, estar nas profundezas do divã se assemelha ao ato de escrever, ou seja, dar um significado aos seus sentimentos e a sensação é tão boa quanto encontrar “tesouros da arca perdida”.

Assim, nos momentos turbulentos, quando nossa casa está de “cabeça para baixo”, é confortante entender o que sentimos e, mais do que isso, somos mobilizados para lidar com eles e, com isso, crescemos, fazemos novos amigos e descobrimos novas palavras. Termino com a recomendação do filme sobre a vida de Paulo Coelho cuja busca era viver situações tao inusitadas que, aparentemente, escreveu muitos livros para entendê-las, mas que monotonia não fazia parte de seu vocabulário.

Helena Pinho de Sá

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Data de publicação: 09/09/2014