Da felicidade

25/02/2014

 

Da felicidade

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" felicidade a gente acha é em horinha de descuido"

Mario Quintana

Ser feliz é tão bom... Mas ao mesmo tempo percebo que é mais fácil escrever sobre tristeza, dores, do que sobre a felicidade. Por que será? Talvez porque a felicidade se baste, ela em si já nos sacia, não requer grandes esforços e nem escrita. Embora prescinda das palavras, quando a felicidade é muito grande transborda. Não cabe na gente, vira sorrisos, brilho nos olhos, energia para viver... tudo fica mais bonito! A dor, quando excessiva, também não cabe e colocá-la em palavras (na melhor das hipóteses) ou sintomas é um gesto esperançoso de tentar encaixá-la em algum lugar para livrar a alma de seu peso. Ao contrário, a felicidade a gente não quer que escape. Não precisamos do outro para digeri-la, ela desce fácil e gostaríamos que ficasse para sempre. Escrever, registrar, talvez seja a ânsia de não permitir que se a felicidade se vá e torne-se apenas saudade.

Muitas vezes admiramos pessoas que viveram momentos difíceis e sobreviveram. As dores quando superadas são motivo de orgulho. A gente admira e chama a pessoa de “forte”. Mas é mais fácil encontrar quem queira ouvir sua dor do que sua felicidade, porque necessariamente isto remete o ouvinte a rever sua própria vida e pesar o quanto tem sido feliz, além de ter que lidar com a eventual inveja, claro. Desde muito cedo aprendemos que não há crescimento sem sofrimento (as crianças fazem seus esforços que lhes parecem imensos: tem que ir à escola e não podem brincar na sala, tem que acordar cedo, tem que escovar os dentes, pentear o cabelo, fazer lição bem na hora do desenho predileto! Hunf!). De certa forma, é verdade que o sofrimento bem digerido vira sim crescimento. Profissionais da saúde, e psicólogos particularmente, tem em seu dia-a-dia um monte de sofrimento despejado em si e buscam, arduamente, digerir os seus e os alheios para crescer junto com o outro. Quando ambos conseguem é ótimo. Mas às vezes esquecemos que ser feliz é também motivo de mérito. Você já percebeu quantas vezes um momento feliz é invadido pela tristeza de que ele acabe? Não é assim o final do domingo? Fica-se triste e esquecemos que ainda é final de semana. Claro que não estou dizendo que o difícil seja viver a felicidade; mas permitir-se, protegê-la e cultivar a felicidade, isso sim é resultado de uma construção laboriosa. Construção não no sentido daquela representação da felicidade tipo “Beleza Americana” ou fotos do facebook “eu-sou-super-legal-e-tenho-um-milhão-de-amigos” que muita gente insiste em forjar (estou falando da fabricação da felicidade e não das fotos-tentativas de reter/partilhá-la), mas falo de uma lapidação da alma que permite que a felicidade seja vivida.

A felicidade é um negócio tão gostoso, viciante, inebriante, que dá uma vontade enorme de nos agarrarmos a ela e não deixarmos mais que escape... Agarrar assim a felicidade é como por passarinho em gaiola, perde sua essência fluida e consequentemente a beleza. (Não é que nem plástica mal feita? Aquelas pessoas que querem congelar o tempo e ficam mais “Frankenstein” do que qualquer outra coisa?!). Juventude ou felicidade constantes não existem, o nome disso é mania. Talvez seja pela consciência de que não se pode aprisioná-la que eu, estupidamente, não costumo tirar fotografias. Sempre tenho a impressão de que só tenho tempo de viver a felicidade e não de registrá-la prontamente (me lembrei da escola, em que eu precisava prestar atenção na aula ao invés de escrever no caderno...). Dentro de mim tento sempre que os momentos sejam vivos como um rio e não uma represa. Tem gente que faz lindas fotos e isso é uma outra felicidade, não aquela do momento exato.

Mas seja com as fotos, textos, memória ou arte de viver, acredito que da felicidade, ou melhor, de momentos felizes, é que devemos construir pilares de uma vida criativa.

Mario Quintana diz lindamente: “Felicidade a gente acha é em horinha de descuido”. Considero uma verdade parcial. A felicidade de um adulto é resultado de uma construção e assim não é por “descuido”, mas verdadeiro porque, a horinha de descuido vem depois do terreno preparado, a felicidade vem assim sem avisar, tipo festa surpresa.

Eu acho que a felicidade requer que a gente esteja “quite” consigo mesmo, sem “dívidas” com a neurose, pelo menos naquele momento, e que aguente, de modo decidido, ser feliz. Tem gente, ou parte da gente, que ataca a própria felicidade. E tem aqueles que permitem que sua felicidade seja invejada e atacada pelo outro. Tem os que desdenham e não podem nunca ser felizes.

Felicidade é grande e é pequena, é também o abraço da filha, os pulinhos da cachorra e o feijão da Cleonice. Felicidade é contar a história, sentir saudades, ter os olhos brilhando e o coração batendo. Felicidade tem que ser partilhada, porque quando é grande não cabe dentro da gente. Mas se reter, engaiolar, lutar contra a fugacidade tira-lhe a vida e vira angústia, ser feliz é também construir as pontes entre os momentos felizes e assim traçar o próprio percurso torcendo pela próxima festa surpresa!

Isabel Silveira

Psicóloga,

Membro filiado ao Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo,

Vice presidente “elect” América Latina na InternationalPsychoanalyticalStudiesOrganization.

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data de publicação: 25/02/2014