Conectando ou reconectando

16/12/2014

 

Conectando ou reconectando.

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Há quem pense, ainda hoje, que a Psicanálise e os psicanalistas gostam de falar do passado, tratam do passado, cuidam do passado. De fato, em determinada ocasião, já distante no tempo, chegamos a pensar que fosse assim.

Se o passado incomoda hoje, evidentemente não é passado, mas algo que se faz presente, que insiste em ser presente, que é vivido no tempo presente. Parece óbvio, mas como dizia um velho psicanalista, o óbvio, muitas vezes, é o mais difícil de se ver. Não podemos, realmente, cuidar do passado, simplesmente porque não vivemos no passado, o passado passou e não existe mais, a não ser presentificado, e aí é presente, convenhamos.

Bion nos ensina que o futuro, tal qual o passado, são rotas de fuga para a mente alienar-se do presente, único que pode ser vivido. Desejo e memória podem saturar a mente e dificultar a abertura para o novo que se apresenta e o aprender com a experiência. Com Ferrari, que trabalhou com Bion, compreendemos que ainda não é amanhã.

Pois bem, mas como psicanalista, vou me permitir aqui a falar do presente e da perspectiva/expectativa de um futuro possível, a partir de uma entrevista que li recentemente do astrofísico Stephen Hawking.

Hawking é um dos cientistas mais consagrados da atualidade, nascido em Oxford, hoje com 72 anos, filho de um médico e de uma filósofa, era apelidado de Einstein no colégio.

Odiava matemática, mas era apaixonado por física e astronomia, “queria sondar as profundezas do universo”, diz. Diagnosticado como portador de esclerose lateral amiotrófica aos 21 anos, o que gradativamente foi paralisando sua musculatura a ponto de hoje comunicar-se com a ajuda de aparelhos acionados apenas pelo seu queixo, casou-se duas vezes, teve três filhos e um neto. É autor de vários livros, como “Uma breve história do tempo” e “O Universo numa casca de noz”. Escreveu também livros infantis, como “George’s secret key to the universe”. Livros estes que nenhum psicanalista moderno deveria deixar de ler. Tornou-se membro da Academia Real de Ciência, criada em 1660, foi vencedor do prêmio Albert Einstein, nomeado Comandante do Império Britânico e recebeu a mais alta honraria civil concedida nos Estados Unidos, a Medalha da Liberdade, dentre outras tantas.

Sucessor de Newton e Einstein, Hawking acredita na existência de outras formas de vida para além do nosso sistema solar, da nossa Via Láctea, embora ache pouco provável. Mas, porque não? Questiona. Um acidente pouco provável poderia muito bem ocorrer duas vezes. Ou mais.

Mas a declaração do astrofísico, motivo da minha atenção neste pequeno texto trata da inteligência artificial e de sua previsão de que poderá se tornar uma ameaça à humanidade, o que causou um certo reboliço na comunidade científica e mais ainda na política, na religião e na indústria. Alguns consideram tal afirmação preocupante, outros exagerada.

E para a psicanálise? O que teríamos a dizer?

Consideramos, sem dúvida, que o desenvolvimento da tecnologia nos trouxe e nos traz inúmeros benefícios, vivemos mais e com maior conforto, temos acesso instantâneo a informações e outras coisas. Mas ao mesmo tempo nos deparamos com um distanciamento afetivo, talvez jamais observado, entre as pessoas e de cada pessoa consigo mesma, particularmente. A tal comunicação ultrarrápida, por imagens, atropela o tempo de elaboração necessário ao nosso funcionamento anímico, humano.

Não é novidade que tal distanciamento afetivo, em busca da tentativa de não sentir e de não pensar sobre o que se sente, abre as portas para desajustes, transtornos e dores da alma que, não podendo ser sentidas e pensadas, são tangenciadas por e para outras vias de escoamento mais primitivas, como os actings, as doenças psicossomáticas, as avassaladoras angústias sem nome, as descargas violentas, as narcísicas tentativas de homogeneizar as diferenças.

E a psicanálise, um tanto na contramão da história, diriam alguns, aparece como um amortecedor, uma resistência em favor do humano em cada um de nós, nos nossos grupos, comunidades, sociedades e culturas tão diversas quanto diversas e ricas devem ser.

Então, subversiva e psicanaliticamente, feito mensagem de Natal, boas-vidas ao Ano Novo e defesa do humano que insiste em pulsar nas profundezas das nossas almas, que tal tentarmos, por alguns momentos a cada dia, nos desconectarmos dos nossos computadores, tablets e smartphones e nos reconectarmos a nós mesmos? E quem sabe, verdadeiramente nos conectarmos também, via afetividade, ao nosso vizinho do lado? Com nossas dores e prazeres, com nossas alegrias e tristezas, com nossas fantasias, com o que sentimos e pensamos, com toda a nossa profundidade, inteiros, plenos, completos, assim como chegamos a este nosso mundo e assim como havemos de partir um dia.

O intervalo entre um ponto e outro é vida que precisa e merece ser vivida.

Adalberto Goulart

Membro Efetivo e Analista Didata IPA - NPA/SPRPE

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data de publicação: 16/12/2014